Na designação de populações rurais, peri-urbanas ou desfavorecidas, é frequentemente utilizado o conceito de comunidades. O conceito é usado em análises académicas, em discursos políticos ou mesmo em instrumentos jurídicos. O termo deixa de ser aplicado na referência a populações urbanas, sobretudo quando residentes nos bairros nobres. Nestes casos, predominam outras designações. Ninguém fala das comunidades da Sommershield, do Triunfo, do Belo Horizonte, mas de ‘moradores’, ‘condóminos’ ou ‘cidadãos’.
Ainda que todo um discurso de evocação das ‘comunidades’ possa ter sido útil no período pós-guerra civil, dando resposta a uma necessidade de administração do território num cenário de fragilização do Estado, o conceito apresenta limitações.
Em primeiro lugar, assume a existência de uma população fixa e residente numa unidade espacial, com limites territoriais estanques. A realidade é que, em virtude de migrações económicas, permanentes ou sazonais, deslocações forçadas por resposta a secas, a cheias ou conflitos militares, as populações sempre estiveram em movimento. A classificação de um indivíduo como pertencente a uma determinada ‘comunidade’ resulta do facto de, por acaso do destino, se encontrar num determinado local durante um recenseamento populacional.
Em segundo lugar, o conceito não capta o facto de os indivíduos poderem pertencer a diferentes espaços, em resultado das suas múltiplas trajectórias de vida. A afirmação de pertença a uma determinada ‘comunidade’ (e não a outra), não deixa de resultar da percepção das vantagens possam advir dessa pertença.
Em terceiro lugar, ao longo de sucesivas vagas migratórias, os mesmos espaços foram ocupados por diferentes grupos, pelo que os limites geográficos entre ‘comunidades’ tornam-se, frequentemente, pouco consensuais.
Em quarto lugar, as ‘comunidades’ não constituem grupos homogéneos, pelo que o conceito esconde múltiplas divergências internas, estruturadas em interesses económicos, políticos, culturais ou geracionais. A ‘comunidade’ compõe, afinal, subgrupos hierarquizados, com múltiplos interesses em disputa, envoltos em tensões e conflitos, ainda que nem sempre perceptíveis para um recém-chegado.
O conceito de ‘comunidade’ apresenta uma continuidade com o conceito de ‘indígena’ do tempo colonial. Imaginadas como eternamente ‘tradicionais’, às comunidades delega-se a resolução dos seus milandos em tribunais e justiças ‘comunitárias’, por oposição a uma população urbana que recorre à justiça nos tribunais.
Em comícios políticos, aos elementos das comunidades apela-se frequentemente ao seu envolvimento ‘comunitário’ na construção de escolas primárias (contribuindo com trabalho ou fornecimento de estacas e tijolos queimados). Aos cidadãos dos centros urbanos é expectável a recorrência a uma rede de escolas já constituída, públicas ou privadas.
As representações construídas sobre membros de ‘comunidades’ ou moradores de bairros urbanos escondem, na verdade, a existência de cidadanias desiguais.