Assistimos a uma versão pós-colonial das campanhas de pacificação e ocupação? Uma reflexão no dia em que se assinalam 130 anos da batalha de Gwaza Muthine
Em finais do século XIX, Portugal era incapaz de ocupar e administrar os vastos territórios ultramarinos. Se bem que contasse com a colaboração de chefes locais, tentativas de imposição da autoridade colonial e de cobrança de impostos enfrentavam uma crescente resistência africana. Assistia-se a uma insurreição de chefes locais contra interesses portugueses, que culminaram no ataque e saque da vila de Lourenço Marques. Foi neste contexto que se desencadearam as chamadas “campanhas de pacificação e ocupação”, conduzidas pelas forças armadas coloniais, nos então territórios ultramarinos.
As tropas coloniais navegaram pelo rio Incomati acima e enfrentaram um exército local em Marraquene, batalha conhecida por Gwaza Muthine, a 2 de Fevereiro de 1885, faz hoje precisamente 130 anos. Esta batalha é recordada, em Moçambique, como um acto de resistência à ocupação colonial. Durante o mesmo ano as tropas portuguesas atacaram Manjacaze, a capital do império de Gaza e depois Chaimite, onde Gungunhane se rendeu a Mouzinho de Albuquerque. Mouzinho veio a merecer um estátua no topo da av. Dom Luís, derrubada durante a efervescência revolucionária do pós-independência e remetida para a fortaleza de Maputo.
A penetração da autoridade do Estado central constituiu um processo extremamente violento. A imposição do pagamento do imposto da palhota, o trabalho obrigatório, as culturas obrigatórias ou os aldeamentos coloniais constituíram projectos impostos à custa da repressão e da brutalidade. No pós-independência, as aldeias comunais, as jornadas de trabalho, ou os campos de reeducação, projectos invariavalmente impostos a partir de Maputo, seguiram a tónica da violência. Já no novo milénio assistiu-se a uma crescente penetração do capital extractivo e de plantações florestais. Estes projectos aumentam a pressão sobre terras, conduzindo ao reassentamento de milhares de famílias camponesas, em projectos que estão longe de ser participativos. No lugar de servir de mediador de conflitos, o Estado moçambicano adopta, geralmente o partido do investidor, com o qual se estabelece em relações rendeiras e clientelistas. As populações reassentadas habituaram-se à violência da unidade de intervenção rápida, chamada para repor a ordem. Se Moçambique é rico em recursos naturais, a realidade é que, entre as populações, predomina a convicção que esses recursos não beneficiam a maioria, mas apenas os poderosos de Maputo, ou da Frelimo.
Nas grandes cidades, nas zonas de extracção de recursos naturais e nos corredores de transporte para exportação assiste-se a uma crescente rebelião popular contra o Estado, agravada na sequência dos protestos pós-eleitorais. Em vários pontos do país verificam-se várias formas de desobediência civil, por intermédio da recusa das populações em pagarem portagens, taxas municipais ou respeitarem as autoridades policiais. Agentes reguladores do trânsito são expulsos por multidões em fúria. Terrenos ociosos são ocupados e parcelados pela população. Sedes do partido Frelimo ou interesses económicos ligados a indivíduos poderosos são saqueados ou queimados.
As estátuas são novamente sacrificadas, derrubadas e arrastadas pelas ruas num processo de catarse colectiva, desta vez à custa de heróis da libertação ou de actuais chefes de Estado. O governo reforça a presença policial, persegue líderes de manifestantes e ensaia um projecto-lei de aumento das penas para 20 anos de prisão para quem destrutir património público. A um problema político, relacionado com a ausência de oportunidades de inclusão económica e política, o governo responde como se de um mero problema de segurança se tratasse.
Cento e trinta anos após a batalha de Gwaza Muthine, um símbolo das campanhas de pacificação dos povos indígenas, assiste-se a uma versão pós-colonial de pacificação das populações e de imposição da autoridade do Estado, sob uma crise de ilegitimidade. A história de Moçambique é a história da violência do Estado contra a população. Mas a verdade é que não conhecemos bem o passado. E porque pouco aprendemos com a história temos tanta dificuldade em compreender o presente. E de perspectivar o futuro.