No passado fim de semana, foi realizada na cidade da Praia a trigésima primeira edição do Festival da Gamboa, um dos maiores eventos populares do país. Há décadas que os festivais musicais de praia constituem uma componente central das relações políticas Cabo-verdianas.
Tal como os espectáculos de gladiadores na Roma antiga, os nossos festivais são o circo do nosso pão e circo:
- constituem uma válvula de descompressão para a população, principalmente os segmentos mais jovens e mais pobres;
- E oferecem uma oportunidade de negócio privilegiada para a massa de operadoras informais que povoam as nossas vilas e cidades
Dada a sua centralidade cultural e económica, as administrações municipais estão cientes que estes eventos representam verdadeiros palcos de avaliação dos seus mandatos.
Em contrapartida, usam-nos abertamente para a angariação de dividendos políticos. Edis como Augusto Neves, de São Vicente, são conhecidos pela utilização intensa de entretenimento popular nas suas estratégias eleitorais.
Paradoxalmente, os elevados orçamentos dos maiores festivais provocam ondas de indignação; as câmaras são acusadas de esbanjar dinheiro em futilidades, quando existem programas urbanísticos e sociais urgentes que esperam por financiamento.
Quanto ao público, as mesmas vozes acusam-no de manter preocupações estritamente lúdicas; e de sofrer de um deficit vergonhoso de cidadania.
Um exemplo em particular é citado sistematicamente como evidência dos nossos níveis deficientes de consciência cívica: a sociedade do Mindelo, que se associa produtivamente pelo carnaval; mas nunca demonstra a mesma iniciativa cívica na abordagem dos seus inúmeros problemas económicos e sociais.
Este quadro de alienação cívica explicitado pela nossa dependência de festivais é preocupante sim: mas é o produto previsível da nossa História e da nossa atualidade política.
Antes de condenar o povo cabo-verdiano por se deixar comprar politicamente por festivais, tentemos perceber as razões históricas, económicas e culturais que lhe conduzem a este comportamento.
Traduzindo a célebre canção “Dimokrasia”, do conjunto musical Bulimundo: se pensares, falarás; se não falares, gritarás; se não gritares, explodirás.
Válvulas de escape como o festival da Gamboa têm como função fundamental gerir as explosões iminentes de um povo que tem graves motivos, históricos e contemporâneos, para toda a sorte de frustrações políticas e sociais.
Quanto à exploração política de festivais pelas edilidades, ela nunca foi mais transparente do que neste último Gamboa, que homenageou os heróis da Independência sob o lema “Pensar para agir e agir para poder pensar melhor”, alusão a uma máxima de Amílcar Cabral.
A recusa do governo do MpD de celebrar com dignidade o cinquentenário da Independência Nacional obriga o PAICV – para quem a narrativa independentista tem utilidade eleitoral – a inventar outros palcos para a sua promoção.
Mas há uma diferença enorme entre o tratamento desta matéria neste festival e, por exemplo, a homenagem à revolução anti-colonial feita pelo Grupo Monte Sossego no Carnaval de 2024.
O Monte Sossego apresentou, com plena legitimidade artística, uma interpretação carnavalesca de uma narrativa marcante da nossa História contemporânea. Já os organizadores da Gamboa limitaram-se a aproveitar a temática independentista para servir, de forma simplista, os seus interesses eleitorais.