Na sequência das eleições gerais de 2024 Moçambique assistiu aos conflitos pós-eleitorais mais intensos de que há memória. Analisando os incidentes é possível identificar a seguinte geografia do protesto:
Em primeiro lugar, as manifestações mais mediáticas concentram-se nos principais centros urbanos, com destaque para a área metropolitana de Maputo, mas também Nampula ou Nacala. Nas grandes cidades, a desindustrialização foi acompanhada pelo crescimento acelerado da população. O mau ambiente de negócios (marcado pela excessiva burocracia, corrupção e problemas de acesso à justiça) dificultam a criação de empregos. Agravada pelas dívidas ocultas, a pobreza urbana continua a conviver com uma emergente sociedade de consumo, com efeitos socialmente sísmicos.
Em segundo lugar o protesto foi visível nas áreas de concentração de grandes projectos extractivos. Pela província de Cabo Delgado, Nampula, Zambézia ou Manica, milhares de garimpeiros ocuparam zonas de extracção de ouro e pedras preciosas, por vezes destruindo instalações de empresas consessionárias e apropriaram-se dos minérios. Noutros locais, populações afectadas por grandes projectos insurgem-se contra empresas multinacionais, acusando-as da não criação de empregos ou infraestruturas sociais. Ao longo das últimas décadas, um investimento em capital intensivo teve pouca relação com o tecido económico local, aumentando a pressão sobre terras, e expropriando dezenas de milhar de camponeses. Promessas vagas de “desenvolvimento” fizeram aumentar as expectativas sociais. Mas a chegada de trabalhadores de fora da região, mais qualificados, que aproveitaram as melhores oportunidades de emprego, não só fizeram crescer a inflação, como alimentaram um sentimento de desprotecção entre os locais.
Em terceiro lugar, o protesto foi intenso nos corredores de transporte, nomeadamente de Maputo, Beira, Nacala e Lichinga. Cansados de assistir à extracção e exportação de matérias-primas (madeira, carvão, areais pesadas, grafite ou pedras preciosas ou gás), sem que fossem visíveis benefícios directos e imediatos, milhares de indivíduos bloquearam corredores de transporte, por vezes cobrando valores monetários pela circulação. Por estes locais emerge a convicção segundo a qual o país é rico em recursos naturais, mas que estes não beneficiam as populações.
Se predominava uma cultura política de súbdito, nas últimas décadas emergiu uma consciência política mais participativa e inconformada. Num cenário de desobediência civil generalizada, sectores da população bloqueiam estradas, recusam-se a pagar portagens e taxas municipais e exigem a diminuição de preços de bens e serviços essenciais, sob ameaça de destruição de infraestruturas. A expressão Anamalala (que em makua significa “acabou” ou “chegou ao fim”) é hoje repetida por todos os grupos etnolínguísticos do país, e constitui um dos símbolos deste movimento de protesto.
Diversos sectores da população, que se sentiam órfãos de um líder mais confrontativo do status quo, encontraram em Venâncio Mondlane a capacidade de preencher o vazio deixado pela morte de Dhlakama ou de, anteriormente, Samora Machel. Venâncio foi capaz de ressuscitar toda uma renamo social, concentrando dezenas de milhares de indivíduos em êxtase, em qualquer comício improvisado, inclusive na província de Gaza, o famoso bastião do partido Frelimo.
Incapaz de se adaptar a uma população mais irreverente, o governo continua a apostar na repressão e criminalização dos manifestantes. As respostas governamentais continuam alheias aos principais problemas do país. Descentralização, despartidarização do Estado, terras e minas, eliminação de benefícios fiscais de grandes projectos ou protecção de direitos humanos constituem reformas necessárias, mas largamente ausentes do discurso governamental. Num cenário de insatisfação generalizada, o governo responde com medidas pontuais, repetindo o slogan “vamos trabalhar” ou “fazer as coisas de forma diferente”. É necessário fingir que muda alguma coisa, para que tudo fique na mesma.