Diário de bordo 3
“Bem vindos a Cabo Verde”. A saudação, à chegada a São Nicolau, foi expressa com um sorriso de boas vindas e envolta num abraço por José Cabral, que se dispôs a ser o nosso guia na visita à ilha que marcou a primeira etapa desta Volta a Cabo Verde em 15 Dias. Militante apaixonado da história e do património da ilha e das suas especificidades, fez questão de marcar a fronteira em relação à ilha do Sal da atualidade. “Sal não é Cabo Verde. No final da vossa visita, compreenderão porquê”, sublinhou, gestos largos a reforçar quanto dizia, para sublinhar o orgulho que exala pela terra que viu nascer Baltasar Lopes, o mais reputado dos escritores cabo-verdiano, e onde foi criada a mais famosa e internacional das mornas crioulas.
Depois das peripécias que marcaram a partida do Sal, esta expedição lá arrancou, com um dia de atraso em relação ao previsto. O monocasco “Prosecco”, da charter espanhola Alboran, não estava em condições de navegar com o mínimo de segurança, pelo que foi substituído por um catamaran. Tudo somado, ficámos a ganhar com a troca. A começar pelo próprio nome: “Prosecco” não é nome que se dê a uma embarcação de recreio, cuja tripulação encara o andar à vela como um prazer e uma forma de celebrar a alegria de viver, a boa disposição e a amizade. Já o catamaran foi batizado com um nome muito mais apropriado ao espírito e à letra desta singularíssima regata. Calcule o leitor que o novo veleiro chama-se “Cachaça”! Ou mais corretamente “Cachaca”, mas aqui para nós alguém se enganou ao escrevê-lo, ou porque não sabia grafá-lo corretamente, ou porque no estaleiro onde o catamaran foi construído não havia uma cedilha, o adereço que faz com que o vocábulo cachaca seja promovido a cachaça. O que é certo é que quando a tripulação tomou posse do catamaran houve quem entoasse, baixinho, a conhecida estrofe “há quem diga que cachaça é água, cachaça não é água não…”
Entre o Sal e São Nicolau foram 16 horas de viagem, para cobrir as 86 milhas náuticas que separam os portos de Palmeira e de Tarrafal. Ou seja, 159 quilómetros. A viagem não teve história, salvo um desagradável episódio de caráter gastro-intestinal de um dos tripulantes, e um pequeno acidente com o escriba-mor. Ao cair da noite, estando a dormitar no seu luxuoso camarote, esqueceu-se de fechar hermeticamente a escotilha e acordou como se tivesse levado com um balde de água em cima. Pelo menos foi isso que logo pensou, rogando pragas ao presumível autor de tamanha graçola, para depois perceber que fora uma onda mais grandona que lambera o casco
e penetrara pela pequena janela, como um duche de água fria. Quanto ao resto, a rota foi cumprida quase sempre só à vela, com a tripulação a revezar-se durante a noite à roda do leme em equipas de dois, por turnos de duas horas. Ao escriba calhou, como parceiro de vigia noturna, o filho Afonso, o barba azul e marinheiro faz-tudo de anteriores aventuras.
Eram sete da manhã quando o Cachaca ou Cachaça fundeou na baía do Tarrafal de São Nicolau. O cronista já o escreveu em anteriores diários de bordo, mas não se cansa de o repetir: a aproximação a uma ilha pelo lado do mar, ao nascer do sol, no silêncio da madrugada, é um dos momentos de felicidade para qualquer marinheiro. O transporte até ao cais do Tarrafal foi assegurado por um barco de pesca artesanal. Recebidos por José Carvalho, começámos o dia com um lauto pequeno-almoço no restaurante de Dona Bia: catchupa, omelete, peixe assado, chouriço, tostas mistas e café com leite. Com o estômago acondicionado, preparámo-nos para uma verdadeira lição de história ao vivo por parte do nosso guia, autor de quase uma dezena de livros, entre os quais duas ficções em que se propôs continuar a saga de “Chiquinho”, o nome que Baltazar Lopes deu àquele que é considerado o melhor romance da literatura cabo-verdiana.
Numa Toyota Hiace, subimos pelas montanhas agrestes da ilha, descemos aos vales profundos, admiramos os seus dragoeiros milenares e os terrenos férteis do norte da ilha, onde se cultiva banana, cana de açúcar, milho, feijão, manga, papaia, maracujá – e por momentos julgámos que estaríamos na Madeira. Da Fajã de Cima, alcançámos a Fajã de Baixo, de onde virámos para a Ribeira Brava – e a toponímia fez-nos recordar os Açores.
A Ribeira Brava, a capital, fica bem no interior, no que contrasta com as homólogas das outras ilhas. Pudera: alvos das frequentes investidas e saques de piratas e navios de nações inimigas de Portugal, as populações costeiras procuraram refúgio no interior montanhoso e de difícil acesso, acabando por se concentrar num lugar conhecido por Ribeira Brava e que ainda hoje, em tempos chuvosos (e este ano foi um deles), faz jus à sua fama bravia e intempestiva. Na Ribeira Brava, o MPD sofrera na véspera um dos seus muitos reveses nas eleições autárquicas, marcadas por uma profunda derrota do partido no poder. Na câmara municipal, que passou para as mãos do PAICV, um polícia vedou-nos o acesso à sala da assembleia municipal. Compreende-se e respeita-se: era lá que estavam depositadas as urnas com os votos das eleições de domingo, dia 1, jornada aziaga para o partido da direita liberal do primeiro-ministro Ulisses Cortês. No edifício que acolhe a sede do município, e como é corrente nas derrotas eleitorais, respirava-se um ambiente semelhante ao de um velório…
Na cidadezinha, de um asseio assinalável, curvámo-nos diante da estátua de Baltazar Lopes e do busto do médico e filantropo Júlio José Dias; visitámos o antigo seminário, onde estudaram figuras grandes da história de Cabo Verde, como os pais de Amílcar Cabral e Aristides Pereira. A Sé Catedral, restaurada a preceito (ver fotografia), serviu de sede ao bispado que chegou a ser de Cabo Verde e das Costas da Guiné.
Na Preguiça, o primeiro porto da ilha, na época que marcou o seu auge político e administrativo, ainda lá estão meia dúzia de canhões de bronze, o pouco que resta de um velho forte português, construído para proteção das incursões de piratas e corsários de vários matizes. Um padrão regista a passagem pela ilha de Pedro Álvares Cabral, na viagem que assinalou a descoberta, em 1500, do Brasil (ver fotografia). Terá este navegador passado simplesmente ao largo, ou aproveitado para fazer a sua derradeira aguada antes de rumar a Oeste, em demanda do novo continente? Aí está uma dúvida nunca desfeita e motivo de polémica entre investigadores e historiadores. À vasta e acolhedora baía do sul da ilha foi dado o nome da nau São Jorge, pertencente à frota de Cabral e que então se afundou algures no Atlântico.
Nesta jornada, de encher o olho, o coração e an alma, não houve tempo para ir à Praia Branca. Pena. Foi lá que nasceu em 1954, numa festa de despedida dos homens que iriam embarcar para as roças de Cacau de São Tomé e Príncipe, que foi criada a morna “Sodade”. O seu criador era um sanicolaense de nome Armando Zeferino Soares, que só recentemente viu consagrados judicialmente os seus indiscutíveis direitos de autor.
De regresso ao Tarrafal (um dos quatro tarrafais que existem no arquipélago e que devem o nome a uma planta que se chama tarrafo), a visita culminou com uma rápida ida ao pequeno Museu da Pesca (ver fotografia). Este centro interpretativo está instalado na sede da antiga SUCLA, a Sociedade Ultramarina de Conservas, Limitada, criada em 1942, e que se dedicou à conserva do atum, de que os mares de São Nicolau são riquíssimos, tal como em espadarte. Com genuíno prazer, a tripulação lavrou uma saudação muito especial no livro de visitas do museu. E inspirado na fórmula como os baleeiros norte-americanos encerravam os seus diários de bordo, também este cronista aqui deixa registado: “So ends this day”.
Até amanhã, em São Vicente.
José Pedro Castanheira
(No catamaran Cachaça, a navegar entre as ilhas de São Nicolau e São Vicente)