Voltemos, porém, ao Sal, a palavra e o conceito com o qual nos estreámos como cronista-mor desta expedição marítima para os ouvintes de RDP África. Planeada até ao milímetro, que é como quem diz até à milha náutica, aterrámos no Sal no dia 28, para, com tempo, nos aclimatarmos, abastecermos de víveres para duas semanas no mar, e sobretudo nos adaptarmos ao barco, o veleiro de nome “Prosecco”, alugado a uma empresa espanhola sediada em Maiorca e que nos aguarda no porto de Palmeira.
Muitos dos que já viajaram até Cabo Verde limitaram-se a ficar pela ilha do Sal. Principal destino turístico do arquipélago, ela passou a ser a sua ilha mais conhecida internacionalmente, muito mais que São Vicente, da cantora Cesária Évora, ou que Santiago, onde reside a capital, Praia. Alguns dirão, do alto da sua sabedoria, que, com essa estada pelo Sal, ficaram a conhecer o país, e até gostaram. Nada de mais completamente errado. Aquele Sal em que aterraram, onde passaram um fim de semana de folga ou mesmo uma semana de férias, desfrutando dos luxuosos hotéis da Ponta Preta, passeando-se nas esplêndidas praias de areia branca, espreguiçando-se ao sol e banhando-se nas águas limpas e cristalinas de Santa Maria, esse Sal é apenas uma parte da ilha, um oásis artificial e estrangeiro que tem pouco, muito pouco, a ver com o resto de Cabo Verde. O que não invalida a crescente importância deste turismo de massas, onde é tudo “prés a porter”, num modelo simplesmente importado do vigente nas Canárias, nas Caraíbas, em Cancun ou até de algumas zonas do Algarve.
Atual motor económico da ilha e do país, no entanto, o Sal – ironia das ironias – foi durante muitos séculos, pelo menos até à independência de Cabo Verde, em 1975, a mais pobre das suas ilhas. Autêntico deserto, sem vegetação nem vida animal, sem uma ponta de água – para além daquela que quase nunca cai do céu (e já vão dois anos sem que a chuva a abençoe )- , o Sal foi a última das ilhas a ser povoada, por escravos negros, africanos, transferidos temporariamente pelos seus senhores da vizinha ilha da Boa Vista. A sua única matéria prima era precisamente o sal, o mineral descoberto na boca de um vulcão há muito extinto no local de Pedra Lume. Explorado durante décadas e exportado em grandes quantidades para o Brasil, o sal do Sal esgotou-se enquanto riqueza económica. Hoje, as impressionantes salinas brancas de Pedra Lume não passam de uma das raríssimas atrações turísticas da ilha, e este cronista teve o enorme prazer de se banhar, com os demais companheiros, nas suas águas mortas e extremamente densas, a fazer lembrar o Mar Morto, que morto se mantém desde os tempos bíblicos e que nem mais esta terrível guerra entre Israel e o Hamas consegue ressuscitar…
Enterrado o ciclo do sal mineral, o Sal ilha entrou num novo ciclo, o do turismo, que para além de turistas, tem atraído uma indispensável mão-de-obra, recrutada noutras ilhas e em outros países africanos. O boom económico tem sido acompanhado por um boom social, inevitável e descontrolado, gerador de emprego mas também de novas formas de pobreza, bem patente nos pequenos bairros de lata que pululam como cogumelos nos arredores da capital, Espargos.
Assim, o taxista que nos levou do aeroporto internacional Amílcar Cabral até a uma residencial italiana em Palmeira, é natural de São Nicolau. Desta ilha é também Belinda, a empregada de um das numerosas lojas de chineses, a Loja Hongge Li, ou simplesmente Lee. Álvaro, o condutor da Hiace (ver fotografia) que nos mostrou a ilha, veio de Santiago, tal como Nilton, o guia que nos apresentou aos pequenos tubarões na Baía da Parda. Já o motorista de uma das maiores traineiras da ilha, e que concorreu sem sucesso à faina de Sesimbra, é de São Vicente – Dario de seu nome, “como o rei persa”, assim se apresentou. Há pouco menos de um século, a população da ilha era diminuta, não ultrapassando o milhar de almas. Número que entretanto se multiplicou por trinta: no último censo, de 2021, a população da ilha já ia a caminho dos 34 mil! O mesmo censo revelou que a população de Cabo Verde tem vindo a diminuir, mas no Sal cresce a uma média anual de 2,5 por cento.
Por inacreditável que pareça, a desértica e outrora paupérrima ilha do Sal acaba por ser mais um dos vários milagres que Cabo Verde tem vindo a operar. Milagre não isento de críticas e limitações, mas delas talvez venhamos a falar quando aportarmos a outras ilhas. Para já, está tudo pronto para a largada, ao final da tarde, desta Volta a Cabo Verde em 15 dias. Caro ouvinte da RDP África, embarque connosco a bordo do veleiro “Prosecco”. Só espero que saiba nadar e, já agora, que não enjoe. Até mais logo, ou até amanhã, já em São Nicolau.
José Pedro Castanheira
Cronista-mor do “Prosecco”, ilha do Sal, Cabo Verde