O leitor não é tolo e portanto já percebeu que este cronista hoje não tem boas notícias para lhe dar. A esta hora, o marinheiro que deveria estar de binóculos bem assestados no cockpit ou empoleirado no topo do mastro real já deveria ter gritado a plenos pulmões: “São Nicolau à vista!” Ora acontece que esta afoita tripulação, que se propunha iniciar no sábado, 30 de novembro do ano da graça de 2024, a partir da ilha do Sal, uma inolvidável Volta a Cabo Verde em 15 Dias, ainda esta nessa mesmíssima ilha, na Baía de Palmeira, de onde era suposto o veleiro “Prosecco” ter zarpado ao final da tarde – tal era o plano de bordo sabiamente delineado pelos irmãos Blasques, Francisco e João, a dupla de experimentados skippers, o primeiro, o Francisco, o mais novo, como skipper-mor, o segundo, o João, naturalmente que menos novo, como seu adjunto, ou assessor, ou braço direito.
O indispensável abastecimento fora assegurado no supermercado Sucata – uma designação algo premonitória, quase que antecipando o que viria a acontecer. A loja, das poucas que ainda escapa à rede das lojas chinesas, fica nos Espargos, a cidadezinha que serve de capital desta ilha do Sal. Cerveja, claro, muita água, bacalhau congelado, batata frita, um saco gigante de amendoins, cinco litros de vinho tinto, uma garrafa de rum cubano e outros comes e bebes indispensáveis a uma saudável navegação e a uma alegre confraternização.
Enquanto isso, parte da equipagem avistou-se com um muito bem sucedido empresário de hotelaria, Manuel António Lobo. Natural do Sal, ou salense, mais precisamente da vila de Santa Maria, todos o conhecem pelo nominho de “Patone”, que nos deu uma panorâmica da economia, mas também da política da ilha, que descobriu no turismo a galinha dos ovos de ouro, responsável pela regular aumento do PIB do país.
Mais ou menos à hora aprazada, a tripulação tomou posse do veleiro, propriedade da empresa charter espanhola Alboran, com negócios em Maiorca, Canárias, Cuba e, claro está, Cabo Verde. “Prosecco”, assim se chama o iate , da construtura francesa Jeanneau, modelo Sun Odyyssey 519, de matrícula de 2018 (ver fotografia). Como no arquipélago só há uma marina no Mindelo, as embarcações de recreio e pesca ficam habitualmente fundeadas ao largo, no caso na baía de Palmeira. A tripulação, a bagagem, os víveres e outros utensílios e apetrechos – como o precioso iPad em que o cronista está a digitar – foram transportados para o veleiro num velho bote de pesca artesanal, de motor fora de bordo. Seguiu-se o que as regras da boa náutica e da mais elementar prudência mandam: confirmar se está tudo nos conformes. Ou seja, âncora, luzes, rádio, combustível, água potável, óleo, dinguy, coletes salva-vidas, defensas, cabos, sei lá que mais, pois que a respetiva lista se espraiava por mais de uma página A4, havendo que tudo verificar e testar. O responsável local da Alboran, acompanhado por dois colaboradores de nacionalidade cubana, estava nervoso e apressado. Até se compreendia, visto que completava nesse dia a bela idade de meio século. Todos os equipamentos mais delicados foram passados a pente fino: o seguro morreu de velho e nunca tínhamos navegado neste barco, nem sequer neste modelo, além de que a experiência ensina que navegar em Portugal ou na Europa não é exatamente a mesma coisa que em África. Um dos últimos equipamentos testados foi a sonda, um aparelhinho que vai mostrando a cada momento a profundidade das águas a que o barco navega. Ora acontece que a sonda tinha um pequeníssimo problema: não funcionava. Pura e simplesmente. O que impedia que nos fizéssemos ao mar. Para que o leitor melhor entenda: navegar sem sonda é como conduzir um automóvel numa estrada serrana, sem faróis, numa noite escruta e de cerrado nevoeiro. Só um louco ou um suicida!
A discussão que se seguiu foi brava. E mais brava ficou quando se percebeu que os responsáveis da Alboran já sabiam há vários dias que a sonda pifara, que nada fizeram para a substituir e nem sequer avisaram estes clientes vindos de Lisboa. A conversa foi subindo de tom, mas o pudor obriga este relator a poupar os seus leitores. Dela dir-se-á tão só que decorreu em português, em espanhol na sua versão cubana e em crioulo cabo-verdiano, entremeada por algumas expressões vernáculas em inglês mas já incorporadas pelas outras línguas nacionais. Em desespero de causa, ainda se tentou consertar a tal sonda, mas apesar dos rogos à Senhora dos Navegantes e aos muitos santos protetores dos homens e mulheres do mar, o aparelhinho não se condoeu (ver fotografia). Que fazer, então?
As alternativas não eram muitas nem brilhantes. Fazer as malas, regressar a Lisboa e processar a charter espanhola sem sequer ter iniciado a Volta a Cabo Verde, era um cenário humilhante, a raiar o absurdo, quem nem valia a pena equacionar. Navegar sem sonda era impensável – hipótese só para loucos furiosos ou para pilotos que conhecessem de olhos fechados os fundos das nove ilhas, não incorrendo em riscos aquando da aproximação aos vários portos. Substituir a sonda, só seria possível no Mindelo, termo da segunda etapa, mas ninguém garantia que naquela marina houvesse um modelo que se ajustasse à personalidade do “Prosecco.” Claro que haveria sempre a possibilidade de contratar um skipper local, disponível, e conhecedor das singularidades da costa cabo-verdiana. A recusa fez quase a unanimidade, porque a experiência mostra que um skipper estranho, que ninguém conhece, constitui frequentemente um fator capaz de estilhaçar em cacos o ambiente quase familiar que esta equipa forjou ao longo de vários anos de navegação conjunta. Restava uma derradeira alternativa: mudar para uma outra embarcação da Alboran, fundeada mesmo ao lado, que tinha o senão de ser um catamaran, um veleiro de características totalmente diferentes, no qual ninguém alguma vez viajara – nem mesmo o mais experimentado dos comandantes.
A decisão foi sendo tomada, noite dentro, ao longo de um democrático plenário. À falta de melhor, a opção catamaran foi-se impondo como inevitável. Com o inconveniente, infelizmente inultrapassável, de, ainda que estando disponível, só poder ser aparelhado durante a manhã.
Esta a razão pela qual permanecemos no Sal mais um dia que o previsto, com prejuízo inevitável da programação. A largada está prevista sensivelmente para as 14 horas. Depois, no Atlântico, cedo deixaremos de ter rede telefónica e internet. Como se disse, nenhum de nós tem qualquer experiência de catamaran. A coisa promete. Mas confiemos, porque não poderíamos ter começado pior esta Volta a Cabo Verde. Esperemos, pois, que no dia 2 já possamos saudar os leitores a partir de São Nicolau.
José Pedro Castanheira
(Oceano Atlântico, num catamaran entre as ilhas do Sal e de São Nicolau)