Diário de Bordo 4
A segunda etapa desta Volta a Cabo Verde foi cumprida na noite de 2 para 3 de dezembro. Ligou as ilhas de São Nicolau a São Vicente, mais exatamente – que o cronista prima por ser rigoroso – o porto do Tarrafal ao do Mindelo. Ao todo, 47 milhas náuticas, ou seja, 87 quilómetros. Largada do Tarrafal pelas 22.00 horas, chegada ao Mindelo pouco depois das 07.00 horas, cabendo ao cronista fazer parte do primeiro turno de vigilância noturna. A noite até começou bem, com um vento a soprar forte e a empurrar o catamaran “Cachaça”, rápido e lampeiro, de vela grande e genoa abertas. Infelizmente o vento, que como se sabe é um ser incontrolável, passou a soprar demasiado, o que obrigou o skiper a usar da prudência e a recolher a genoa. E foi ver quatro homens e oito mãos, à uma, a puxar o cabo que enrola aquela vela. Quando no final do turno desceu ao camarote, no casco de estibordo da proa, o cronista não imaginava o que o esperava. O vento rebelara o mar e durante o resto da noite, escura como breu, foram chapadas atrás de lambadas das ondas no casco, a salpicar o sono justo de quem bem merecia um descanso para melhor poder enfrentar a jornada seguinte.
Com isso, nem se deu pela passagem do veleiro pela ilha de Santa Luzia, uma das dez do arquipélago e a única que, por não ser povoada, foi excluída deste programa de festas. Escondida e envergonhada no escuro da noite, de Santa Luzia sobrou apenas a luz titubeante de um pequeno e fraco farol, avistado de muito longe pelo vigia de serviço.
Na marina do Mindelo, a única existente em Cabo Verde, a tripulação estreou-se na delicada e complexa operação de acostar o catamaran, uma embarcação muito maior que os veleiros tradicionais a que estes marinheiros amadores se acostumaram. Tomado o pequeno-almoço no Café Royal, seguiu-se um banho generalizado dos sete tripulantes, o que já não acontecia há alguns dias. O balneário da marina é um pouco decrépito, sem vestuários e apenas com água fria, ainda por cima racionada. Mas soube muito bem, passar água e sabão e mais água por todo o corpo e vestir roupagem limpa, bem cheirosa e engomada. Um homem até parece que rejuvenesce.
A nossa guia no Mindelo foi a Ana Cordeiro, uma portuguesa que trocou há muitos anos Portugal por São Vicente, onde desenvolveu trabalho de monta, por todos reconhecido, no âmbito do Instituto Camões. O escriba conheceu-a na sua ilha de adopção há quase trinta anos, quando ela o convidou a apresentar um livro que provocou acesa polémica em Cabo Verde, chamado “Quem Mandou Matar Amílcar Cabral?”. Talvez possamos voltar a esse assunto mais à frente neste diário. Agora, há que registar o passeio que a Ana nos proporcionou pelas ruas, praças e edifícios como o Centro Cultural do Mindelo, o Clube Náutico, a Câmara Municipal (que conserva na fachada o escudo da antiga potência colonial), o Palácio Presidencial , a igreja de Nossa Senhora da Luz e o mercado municipal. Memórias do Mindelo, que viveu a sua glória nos séculos XVIII e XIX, graças à fantástica, larga e segura baía, virada para Santo Antão e protegida pelo Monte Cara, onde nem é preciso grande imaginação para nele descortinar o perfil de um ancião em que alguns notam semelhanças a George Washington.
Do antigo e afamado porto destinado a abastecer de carvão os navios ingleses no seu permanente vai-vem entre a Europa e a América já pouco resta. Ainda assim vale a pena atentar nos painéis de azulejo da Praça Estrela – hoje transformada num mercado africano – e que ajudam a reconstituir, a azul e branco, o que foi a cidade nos seus anos de ouro, em que a comunidade britânica ali instalada eram quem ditava mais cartas.
No rápido deambular pelo centro histórico, valeu a pena subir os três andares da Torre de Belém, um pastiche da genuína ali edificada vai para um século e na qual o Governo cabo-verdiano aproveitou para criar um pequeno mas interessante espaço museológico. Temia-se que estivesse repleta de hordas de turistas despejados, manhã cedo, por um navio cruzeiro mastodôntico, mas felizmente para nós não havia quase ninguém. No alto deste émulo da Torre de Belém desfruta-se uma belíssima vista sobre a baía (ver fotografia), pejada de embarcações de todos os tipos, feitios e nacionalidades, de pesca, recreio, comércio e carga, a comprovar que São Vicente permanece toda ela virada para a atividade portuária – e nisso reside muito da sua singularidade histórica e cultural. Com a diferença que ao depósito do carvão britânico sucedeu a indústria menos suja do turismo.
O final da manhã esteve reservado para uma atividade lúdica: um banho na praia de S. Pedro, na companhia de … tartarugas. Alugou-se uma Hiace à saida da Marina e lá fomos, quase todos, de trouxa debaixo do braço. São tartarugas residentes, visto que se habituaram a que pescadores e turistas, mais estes que aqueles, as alimentem diariamente, dispensando-as do esforço a que todo o animal, incluindo o bicho-homem, é obrigado. O negócio é simples. Um pescador – no nosso caso, o senhor Luís, presidente da Associação de Pescadores da Praia de S. Pedro – leva os interessados de barco até meio da baía, chama aqueles grandes répteis marinhos acelerando o motor fora de bordo e jogando para a água pedaços de peixe. Consta que o isco preferido é a sardinha, e minutos depois é vê-las a aproximarem-se do barco, cabecinha fora de água ou a nadar pachorrentamente a meia nau. O mar é tranquilo, a água é limpissima e amena, quem quiser pode mergulhar, o senhor Luís até disponibilizou óculos submarinos. O cronista nem hesitou (ver fotografia) e lá esteve, divertido, a confraternizar com os bichanos, alguns deles com um bom metro de comprimento e certamente que muitas dezenas de quilos. São amáveis, aproximam-se sem temor e até se deixam tocar pelos mãos e pés dos banhistas.
O almoço foi num dos vários restaurantes da praia. Peixe grelhado para toda a gente. Na escolha da estreita ementa, ganhou, contra a garoupa e o atum, o esmoregal, que passou a ocupar o top das preferências gastronómicas.
Ao volante do seu Hiace branco, limpo a preceito, o José Delgado levou-nos pelo interior da ilha. No alto do Monte Verde, que de verde tem muito pouco, os horizontes estavam demasiado toldados pela névoa. Da cidade do Mindelo, que não cessa de se estender, montanha acima, fazendo lembrar as favelas brasileiras, pouco se conseguia ver em pormenor, salvo as colunas de fumo que saem em contínuo da queima desordenada e caótica de lixo urbano. A leste, recortava-se a ilha de Santo Antão, uma muralha imensa e escura de rocha, esmagadora. A oeste, a silhueta de Santa Luzia não passava de uma vaga impressão. Já a norte era perfeitamente visível a Baía das Gatas, que acolhe todos os anos um dos mais famosos festivais de Músicas do Mundo (ver fotografia).
Uma das ilhas mais áridas e secas, São Vicente não tem muito mais que ver. São Vicente é o Mindelo, a segunda cidade do país e o seu tradicional pólo cultural. E ao Mindelo regressámos. O nosso improvisado guia levou-nos ao cemitério. Fazia questão de nos mostrar a campa da mais famosa das filhas de São Vicente: Cesária Évora. O escriba sabe, por experiência própria de muita reportagem que assinou, mundo fora, que um cemitério é uma especie de cartão de visita do lugar ao qual dá serventia. O do Mindelo, que nunca percorrera, não é excepção e valeria mais tempo e atenção. Fiquemo-nos por Cesária. A “diva da morna”, como ficou conhecida, que passeou a música e a poesia cabo-verdianas por todo o lado, é a figura mais conhecida, admirada, cantada e adorada do país. Na sua ingenuidade, o cronista admitiu que a campa de Cesária tivesse a dignidade que a sua imagem e memória recomendariam. Puro engano. O túmulo onde repousa só se distingue dos demais por não ter uma cruz, e por referir apenas a identidade da mãe, percebendo-se pela omissão que era filha de pai incógnito. A placa de mármore parece ter sido objecto de violação. Quanto a flores, muitas, eram todas de plástico, que o tempo e o sol se encarregaram de quase descolorir. Valham as muitas conchas e búzios que cobrem a campa, votada a um semi-abandono. A fabulosa intérprete do “Sodad” merecia mais respeito.
Cesária está por todo o lado. A começar pelo fabuloso painel esculpido por Vlils numa das paredes no centro histórico. E por falar em cultura, seria criminoso omitir o Centro Nacional de Artesanato e Design, CNARTE. Edifício imperdível, pela ousadia, cores e imaginação, a fazer lembrar o que também foi o centro Georges Pompidou em Paris.
À noite, no restaurante Tchicau onde a tripulação se reuniu, depois de uma muito engraçada conversa com o escritor cabo-verdiano Germano Almeida, o jantar foi literalmente regado pelo embalar da música de Cesária, na voz da cantora Idília, acompanhada à viola por Manecas. O manjar, com que a proprietária brindou a marinhagem do “Cachaça”, foi digno dos deuses. Ainda assim, foi a música de Cesária, cantada, batucada e até dançada por estes marinheiros e acompanhantes, que mais perdurará nos anais desta Volta a Cabo Verde.
De regresso ao seu camarote, à falta de inspiração, o cronista trocou o iPad pelo remanso quente do saco-cama. E não admira que tenha adormecido a cantarolar, embalado, já não sabe se por uma morna se por uma coladera.
José Pedro Castanheira
(4 de dezembro, Porto Novo, ilha de Santo Antão)