Diário de Bordo 5
A viagem entre São Vicente e Santo Antão (duas horas de mar para cobrir as 9 milhas náuticas, pouco mais de 16 quilómetros) nao teve história digna de figurar neste Diário de Bordo. Adiante, pois, que não há tempo a perder com miudezas de percursos semelhantes aos de uma vulgar ida às Berlengas… Fundeado o “Cachaça” na baía de Porto Novo, um pescador tratou de nos levar num bote para o cais, de onde partimos à descoberta de Santo Antão, a ilha verde.
À saída do terminal do ferry aguardava-nos o nosso guia, António Santos ou “Tony”, um funcionário público reformado e ex-deputado do MpD, o partido do governo, e que se dispôs gentilmente a acompanhar esta expedição. O meio de transporte foi, mais uma vez, uma carrinha Toyota Hiace, com lotação para 15 pessoas desde que bem arrumadinhas, e que é o principal veículo de transporte público em Cabo Verde. A Hiace deste primeiro dia em Santo Antão foi a de um pequeno empresário, Adelino Pires, que conhece todas as curvas e contracurvas e sobretudo as subidas e subsequentes descidas.
Segunda maior ilha do país em termos de superfície, Santo Antão está dividida em duas partes bem distintas: o lado sul, bastante mais plano, exposto ao sol, e seco, seco, seco; e o lado norte, muitíssimo montanhoso, fresco, e verde, verde, verde. A passagem do lado sul, onde fica a capital, Porto Novo, para o lado norte, onde vive a maioria de uma população em sucessiva perda demográfica, faz-se principalmente através de uma estrada montanhosa, herdada do tempo colonial. É uma viagem fantástica, para se fazer devagar-devagarinho, que revela as diferenças flagrantes entre as duas metades da ilha, e de uma beleza indescritível. O cronista, que já estivera na ilha por duas vezes, confessa que lhe escasseiam os recursos para a descrever, desenhar, pintar, modelar. Faltam mesmo os adjetivos que mais de adequem à paisagem de uma natureza em bruto, tingida de múltiplos tons de verde, a que o homem se foi timidamente adaptando e transformando ao longo de séculos.
A chamada estrada da corda, que percorre o topo das muitas montanhas que ora se sucedem, ora se cruzam, é um fascínio de causar arrepios. O miradouro preferido é o que nos revela, de um lado, cá em baixo, a Ribeira da Torre, enriquecida no seu caudal por uma cascata de muitas centenas de metros de altura, e, do outro, a Ribeira Grande. Duas ribeiras que se unem antes de desaguarem no oceano na cidadezinha que foi buscar o seu nome a uma delas, a Ribeira Grande. Sob o risco de ser apressado e injusto, até porque ainda nem conhece todas as ilhas, o cronista atreve-se a dizer que esta será, muito provavelmente, a paisagem mais espantosamente bela de Cabo Verde (ver fotografia). Uma afirmação certamente ousada, a ser confirmada, ou não, daqui a uma semana, quando se concluir este périplo por Cabo Verde em 15 dias.
O almoço, o desejado e merecido almoço, foi no restaurante Melícias, na estrada que corre paralela à Ribeira da Torre. É uma das inúmeras ribeiras que nascem em parte incerta nas montanhas e que, na época chuvosa, que se concentra nos meses de julho a setembro, correm, fresquisssimas, abundantes, mesmo perigosamente imparáveis, até ao Atlântico. Sobre o almoço, o leitor que de preparar para salivar, que vale a pena. Um manjar, pela sua variedade, riqueza e bem servir, digno dos deuses: esmoregal (o peixe que continua a liderar as preferências) e atum, carne de porco e frango assado, ovos de codorniz, fruta-pão, mandioca, inhame, abóbora, batata doce, lentilhas, arroz, batata frita, salada… Tudo fresco, de qualidade e em quantidade. Com muita cerveja Strela, sumo de cana de açúcar e de maracujá, e café, acompanhado do famoso grogue de Santo Antão. Contas feitas, deu 13 euros por cabeça, já com gorjeta. O leitor acha caro?
O repasto nem foi muito demorado. Melhor, no entanto, fizeram os outros grupos de clientes deste agradável restaurante ao ar livre na beira da estrada, que trataram de o encomendar antecipadamente. Pequenos grupos, todos estrangeiros, várias nacionalidades, de caminhantes ou montanhistas, que vêm no ferry de São Vicente, tomam uma Hiace em Porto Novo, passam para o outro lado da montanha, hospedam-se em pequenos hotéis, pensões e residências particulares, e durante alguns dias se atiram aos numerosos trilhos das montanhas, numa descoberta sempre renovada das originalidades e belezas menos conhecidas de Santo Antão. Um tipo de turismo que até resistiu aos tempos negros da pandemia, sustentável, portanto, que respeita a identidade da ilha e que nada tem a ver com o modelo de turismo de massas, importado por outras ilhas e com consequências absolutamente devastadoras. Foi o que, ao final da tarde, nos explicou Leão Lopes, um intelectual e artista de renome, que foi ministro da Cultura em anterior governo do MPD, e que aposta com todas as suas forças num modelo de desenvolvimento alternativo para a sua ilha. “Os responsáveis políticos do país, governo e oposição, têm de perceber que Santo Antão é uma dádiva!”
A jornada santoantonense prosseguiu até à Ponta do Sol, um minúsculo porto de pesca na extremidade da ilha, onde em tempos foi construído um aeródromo, que, por demasiado curto na sua pista, sujeita a ventos cruzados, intensos e irregulares, rapidamente foi desativado (ver fotografia). De modo que Santo Antão, apesar da sua grande extensão, é, de par com a pequena e rebelde Brava, das únicas ilhas a que não há acesso por avião, o que constitui uma aparente desvantagem em relação às demais, mas que também pode ser encarada como uma vantagem de longo prazo.
Pela Ponta do Sol passa, a acreditar no que se lê num pequeno memorial, o meridiano que serviu de base às intensas negociações políticas e geostratégicas que, no século XV, deram origem ao famoso Tratado de Tordesilhas, através do qual os reis de Portugal e Espanha dividiram entre si o planisfério em matéria de descobertas marítimas a promover (ver fotografia). Um tema assaz controverso na historiografia mundial e que continua a fazer o encanto dos historiadores sobre aquela época, em que ambas as potências ibéricas deram novos mundos ao mundo.
José Pedro Castanheira
(4 de dezembro, no porto de Porto Novo, ilha de Santo Antão)