Diário de Bordo 8
Ainda não eram cinco da manhã quando um primeiro grupo de expedicionários largou do veleiro estacionado no Porto de São Filipe para tentar subir a pé ao vulcão do Fogo. 2.829 metros de altitude, quase mais mil que a Serra da Estrela, e mais quinhentos que a ilha açoreana do Pico, que é, como bem se sabe, a montanha mais alta de Portugal. Às nove horas, partiu um segundo grupo, bastante menos jovem que o anterior, menos ambiciosos nos seus propósitos, disposto a escalar até ao topo do vulcão secundário que entrou em atividade em 1995 e repetiu a proeza em 2014. Um terceiro grupo, formado pelo skipper e respetivo adjunto, ficaram a bordo, por razões de saúde (leia-se: uma arreliadora gastroenterite) e de segurança, posto que o “Cachaça” não estava numa marina mas tão só fundeado ao largo, em condições que não eram as melhores.
A esta altura, quem nos esteja a ler, atento e ansioso por saber mais novidades desta Volta a Cabo Verde em 15 Dias, já terá perguntado aos seus botões, se acaso tiver envergado uma vestimenta com os ditos cujos: mas afinal, com este paleio todo, em que raio dos três grupos é que embarcou o escriba-mor? Haverá mesmo leitores a murmurar a insinuação: não me digam que o homem se cortou e não teve nem pernas nem ambição para subir até lá acima…
O cronista, que antes de virar cronista é um reporter, se há um valor pelo qual procura pautar a sua condição, seja a de velho profissional de escrevinhador, seja a de simples aprendiz das artes de marinhar em navios à vela, embarcações afins e ofícios correlativos, esse tal valor que erigiu numa espécie de estrela polar orientadora da sua conduta em todos os domínios da vida e no relacionamento com o seu vastíssimo público, seja simplesmente leitor, seja radio-ouvinte, seja telespectador, seja consumidor de redes sociais, esse valor é a verdade, e não vou entrar agora em discussões de caráter filosófico, metafísico ou ontológico sobre o conceito, assaz complexo, da verdade, pelo que, e para não me alongar em demasia e procurar simplificar, de uma forma por todos atendível e entendível, sempre direi que esse dito valor é, senão a tal verdade, suprema e indiscutível, pelo menos a sua insistente e porfiada procura.
Bom, mas adiante, que já me estou a perder e confundir, e o que se espera deste diario de bordo da tripulação do “Cachaça” sobre o dia 7 de dezembro de 2024 não é que se aventure em deambulações abstratas e quase estractosféricas, nem que relembre e comemore os cem anos do nascimento do cidadão Mário Alberto Nobre Lopes Soares, nem que atualize os resultados do campeonato de futebol, com o Sporting e o Porto a afundarem-se e o SLB a manter-se cada vez mais à tona. O que se aguarde deste diarista é que finalmente cumpra o anteriormente prometido e diga se se atreveu, ou não, a trepar ao vulcão.
Pois a verdade é que, no momento alfa ou omega, em que um homem tem mesmo de tomar uma decisão, ponderadas todas as circunstâncias circunstanciais, as capacidades físicas, as disponibilidades mentais e psicológicas, a pulsão do jornalista repórter veio ao de cima e sobrepôs-se aos ímpetos conjuntos do caminhante, do atleta, do montanhista e do candidato a alpinista, desejosos de averbar mais um vitorioso troféu, a somar-se a muitos outros de semelhante jaez.
Pois como se ia dizendo, a referida pulsão foi mais forte. O cronista, enquanto repórter, até já tinha subido ao Fogo há 28 anos, quando cobriu para o semanário Expresso a erupção vulcânica de 1995. E se então não chegou a tocar no céu, em bicos de pés, no ponto mais alto da alta montanha, o facto é que ascendeu até onde lhe foi possível ao vulcão lateral que entrara em atividade, demonstrando insofismavelmente que no seu interior se aloja um imenso dragão que, quando acorda mal-disposto, é mesmo o diabo em pessoa. E se nessa época não trepou mais alto, não foi por falta de muita vontade e ainda maior determinação, mas porque, quanto mais subia, mais calor ia sentindo e mais insuportavelmente quente estava aquela mescla de areia preta, poeiras, gravilha, pedras e calhaus, bombas, piroclastos e demais materiais expelidos da chaminé vulcânica. Ou seja, o mesmo vulcão, agora adormecido e temporariamente domesticado, já não tinha tanto interesse quanto aquele que, ha quase três décadas, encontrara bem acordado, vermelho de raiva, a fumegar de furor, furioso e a ferver de quase louco – e sobre essa inesquecível experiência até escreveu uma reportagem, a que deu o título de “O sussurro do dragão”, ilustrada com numerosas fotografias que ele próprio fizera, não com um telemóvel, pois que ainda não chegara o seu tempo, mas com uma máquina fotográfica daquelas a sério.
Na véspera, ao jantar no Tropical Clube, o escriba conhecera o guia desta expedição e logo intuíra que melhor que Fausto do Rosário não poderia encontrar. Era matéria-prima do mais alto coturno. Oportunidade única para, em vez de repetir sem novidade o que já vira, fizera e escrevera, descobrir o resto, certamente que imenso, da ilha.
Sendo assim, e enquanto os seus companheiros se fizeram à pata à conquista da montanha, o cronista foi dar uma volta de carro à ilha, guiada pelo já amigo Fausto, que tudo lhe mostrou e de tudo lhe falou, com o conhecimento, a informação, o rigor e a generosidade que só os sábios e os homens-bons possuem.
Dessa inesquecível volta pelo Fogo se dará conta noutra oportunidade, e para tanto se apela à compreensão do leitor. Da etapa foguense – a quinta desta volta a Cabo Verde por nove das suas ilhas – apenas mais se dirá que teve um ponto muito alto na famosa Chã das Caldeiras, palco principal das tragédias humana das três últimas erupções: a de 1951, a de 1995 e a de 2024. Mas também da teimosia, coragem e vontade de tudo refazer por parte da população residente na Chã. Como não se cansou de dizer Fausto do Rosário, “é isso a resiliência. Nós, foguenses, desafiamos o impossível.
PS 1 – Para a história desta viagem, e até para os anais do vulcão do Fogo, sempre se dirá que o grupo da malta nova (três primos Castanheiras: os marinheiros Afonso e Nuno Miranda, e o acompanhante Gonçalo) subiu e desceu até ao topo do vulcão em menos de quatro horas , num percurso de cerca de 12 quilómetros. Já o grupo do pessoal reformado (o marinheiro e “chef” Nuno Castanheira, a mulher e médica Helena Oliveira e a acompanhante, amiga e bióloga Manuela Cunha), muito mais rigoroso em matéria de cronómetro e pedómetro, cortaram a meta dos 4,650 quilómetros em 1 hora 23 minutos e 42 segundos. Caros leitores e caras leitoras: palmas para os corajosos!
PS 2 – O atraso desta e de algumas das anteriores páginas do Diário de Bordo é justificável por várias razões. O cansaço, certamente, o sono, concerteza, a falta de inspiração, inevitavelmente, e a inconstância do acesso à internet, que ainda não consegue cobrir todos os metros quadrados do vasto Oceano Atlântico.
José Pedro Castanheira
(7 de dezembro, porto de São Filipe, ilha do Fogo)
Diário de Bordo 7
Após a dupla jornada na ilha de Santo Antão, seguiu-se um dia inteiro de viagem até ao Fogo.
Já sabíamos que seria a mais longa etapa desta volta: 132 milhas náuticas (seja 244 quilómetros), para as quais haviam sido calculadas 22 horas. O que não estava programado foi a trovoada que insistiu em acompanhar o “Cachaça” durante quase toda a noite.
A largada de Porto Novo foi ao final da tarde, com a “ilha verde”, na hora da despedida, a acentuar as razões porque tem mais encantos (VER FOTOGRAFIA). O pôr do sol, que nesta época do ano acontece por volta das 18 horas, tem lugar cativo nestes diários de bordo. Neste caso, o astro que nos aquece e dá vida foi-se escondendo atrás da ilha montanhosa, a estibordo (VER FOTOGRAFIA), enquanto a bombordo a vizinha ilha de São Vicente se ia preparando para enfrentar o escuro de uma noite sem luar, com as luzes da cidade do Mindelo e do seu grande e movimentado porto a ganharem vida. Depois da opípara almoçarada no Babilónia de Leão Lopes, ninguém sentia a necessidade de um jantar de faca, garfo e guardanapo. Optou-se por uma ligeira sopa de tomate em pó da Knorr com ovo cozido, acompanhada por croutons do Pingo Doce que o João Blasques nunca se esquece de incluir na bagagem. As escalas de vigia noturna já vinham programadas de Lisboa e ao escriba-mor, que faz sempre equipa com o filho Afonso, coube-lhe a da meia-noite às duas. Cansado, como os demais tripulantes, aproveitou para dormir um pouco antes de cumprir as suas duas horas no convés. Quando o irmão Nuno, que o antecedeu na escala, o acordou para que o rendesse, deu-lhe a novidade: estávamos a navegar na companhia de uma insistente e arreliadora trovoada. Trovoada longínqua, mesmo muda, posto que nunca se ouviu o ribombar de um só trovão, mas que se prolongou por cerca de quatro horas. Com o céu sem luar e coberto de nuvens, também não era possível arregalar os olhos perante o desenho sempre diferente mas sempre espetacular dos relâmpagos a descerem velozes e a riscarem o breu de estonteantes zigue zagues. Tudo quanto nos era dado observar era o céu a ser repetidamente iluminado, a uma cadência irregular mas que por um longo período chegou a ser de dois em dois ou três em três segundos. E se ao princípio a tempestade rebentou a estibordo, viria mais tarde a fixar-se à ré do veleiro, parecendo pairar, quem sabe, lá para os lados de Santo Antão e São Vicente.
Parecia que, lá no Olimpo onde tudo decidem, os deuses haviam entrado em acesa discussão sobre o que fazer com esta expedição náutica em torno das ilhas de Cabo Verde. Já nas anteriores incursões, aos Açores e à Madeira, eles se haviam intrometido, chegando mesmo a pô-las em risco, mas desta vez ainda não tinham dado qualquer sinal da sua graça. A borrasca entre alguns dos deuses terá sido valente, visto que até chuva fizeram cair sobre o catamaran, mas ao final optaram por o deixar prosseguir em paz e sossego, não fazendo uso das suas armas mais poderosas, seja agitando as ondas do mar, seja soprando ventos indomáveis. Pelo menos por enquanto…
Chegada a aurora, já não havia sinais da tempestade e a viagem prosseguiu sob um céu azul e limpo. Quem não a tivesse visto com os seus próprios olhos, certamente não acreditaria. O escriba atreveu-se então a um duche na casa de banho da luxuosa suite. Nunca tal o fizera, mas não há como experimentar. Duche de água doce e fria, convenientemente racionada, com muito gel de banho. Que bem que lhe soube!
O almoço teve a assinatura do “chef” Nuno. Já habituado a estas lides, sabe que não vale a pena inovar nas ementas e que o bom senso manda que se passe o mínimo de tempo na cozinha, no fogão ou no forno. Velejar não é propriamente um desafio gastronómico e a marinhagem, regra geral, não é exigente – é malta que se contenta com pouco, só não quer é ficar esfomeada. Feijão frade enlatado da Compal, atum em lata da Frescomar e, de novo, ovo cozido, tudo regado com azeite Andorinha, igualmente enlatado, acompanhados de cerveja ou vinho. E como o destino era o Fogo, nada melhor que um branco fresco local, da marca Chã.
Tranquila e sem história, a viagem só se animou à vista da ilha do Fogo, que de longe tem a configuração de um cone (VER FOTOGRAFIA). Se houvesse um vulcanólogo a bordo, seria a altura para ele brilhar, explicando que a ilha resultou da erupção de um vulcão submarino e que o tal cone é apenas a parte visível. A aproximação permitiu descortinar, a estibordo, dois pequenos ilhéus, o Seco e o Rombo, pertencentes à ilha Brava, mas esta, apesar de tão próxima do Fogo, manteve-se escondida, envolta numa espessa névoa. Sabendo que também terá a nossa visita, a Brava preferiu reservar-nos a surpresa da descoberta.
Fundeados no porto de São Filipe, seguiu-se o que o ouvinte já estará a adivinhar: um bote de pesca a levar a tripulação para terra, o aluguer de uma Hiace e ala para a cidade. Infelizmente a tarde já ia avançada e não deu para grandes incursões na capital, que tem a fama de estar muito bem conservada e ostentar traços vincadamente portugueses.
Para o jantar, o nosso guia foguense, Fausto do Rosário, reservou mesa no Tropical Clube. Não colhendo a unanimidade, muitos foram os que manjaram uma especialidade local, peixe serra condimentado com coco e caril. Muito interessante, a mistura. Para matar a sede, além da cerveja Strela que nos acompanha há uma semana, testou-se o rosé da Chã. Nada de especial.
O jantar foi rápido: o dia seguinte adivinhava-se muito exigente e cansativo, com a subida ao vulcão do Fogo, pelo que haveria que acordar muito cedo e retemperar energias. Uma vez sem exemplo, a proposta de subida a pé ao vulcão – 2829 metros de altitude, quase mais mil que a Serra da Estrela – dividiu completamente os membros da tripulação. E se há os que, marinheiros empedernidos, optaram por permanecer no barco, outros não se entenderam quanto à extensão do percurso e à meta a atingir.
Pois é, caro ouvinte, o escriba pôs-se a pensar, hesitou no que fazer, sopesou as várias alternativas, que confrontou com as suas capacidades, desejos e prioridades. E decidiu. Mas do sentido dessa magna decisão só lhe dará conta amanhã.
PS – mais que um recebedor deste Diário de Bordo alertou para uma incorreção cometida quando se identificou o presidente da câmara municipal de Porto Novo derrotado nas eleições autárquicas de 1 de dezembro. Tratou-se de Aníbal Fonseca e não de Mário Fonseca. Aqui fica o reparo, com o devido pedido de desculpas ao próprio e aos leitores.
José Pedro Castanheira
(7 de dezembro, “Cachaça”, porto de São Filipe, ilha do Fogo)
Diário de Bordo 6
A alvorada foi mais tardia que o costume, porque um homem não pode andar sempre a toque de caixa. Tomado o pequeno-almoço na pequena residencial Caraíbas, a tripulação embarcou de novo na Hiace do senhor Adelino, mais uma vez sob a orientação do alegre e disponível “Tony”. Se na véspera calcorreáramos o norte da ilha – a tal parte verde, verde, verde -, o plano reservara para hoje o lado sul – seco, seco, seco. Destino final: Tarrafal de Monte Trigo, um pequeno porto de pesca recentemente descoberto como mais uma das muitas atrações turísticas desta ilha de enormes potencialidades. Descoberto, foi o verbo escolhido pelo escriba, e em boa hora o fez. Durante décadas, mesmo séculos, aquele Tarrafal, que ao contrário dos seus dois homónimos de Santiago e de São Nicolau, nunca foi prisão política, muito menos campo de concentração, viveu totalmente isolada e abandonada. Só acessível a pé (ou com ajuda de um quadrúpede) ou por via marítima. Até que foi construída uma estrada de paralelepípedos de basalto, a principal matéria-prima da ilha.
As paragens pelo caminho são obrigatórias. Para o viajante se espantar perante as profundezas cavadas nas rochas vulcânicas pelas muitas ribeiras que descem ziguezagueado da montanha; para sentir a forte ventania a soprar no miradouro de Campo Redondo; para desfrutar do espetáculo do que, há muitos milhões de anos, foram sucessivos vulcões, ao mais impressivo dos quais foi dado precisamente o acertado nome de Campo Redondo (ver fotografia); para descobrir, pequenininha, lá muito longe, brotando no meio de uma parede rochosa, uma cascata que não corre o risco de secar, bastante para fornecer o Tarrafal de água e regar os poucos mas férteis terrenos agrícolas, onde cresce o milho e o verdíssimo inhame. E se gostar de animais e tiver tempo, até pode abeirar-se de um ou outro curral de cabras, verificar as condições miseráveis em que vivem, e até pegar num cabritinho, branco, preto, castanho ou malhado, que sempre consegue sair do redil e, não receando os humanos, deles se aproximam a balir com o seu inconfundível méeeeeee, à espera de uma retribuição, seja um qualquer alimento, seja uma fotografia para mostrar à família…
Consta que a praia do Tarrafal de Monte Trigo será a melhor da ilha (ver fotografia). Areia preta, água limpida, rica em peixe e crustáceos, o povoado é habitado por um núcleo de pescadores e por estrangeiros caídos de paraquedas. O que não se compreende é que a estrada, novinha em folha, de paralipipedos, que serpenteia e sobe a montanha antes de descer para o povoado, acabe inexplicavelmente a duas ou três centenas de metros do Tarrafal, num espaço que mais parece uma lixeira. E não há sinais visíveis de que a obra venha a ser prolongada.
À míngua de tempo, a tripulação e acompanhantes, que até se haviam equipado para ir a banhos, não tiveram remédio senão engolir em seco. O almoço, concertado de véspera, aguardava-os. A estrada foi a mesma, posto que única, mas em sentido inverso. Agora bem mais veloz e sem paragens, sempre num cenário de secura que só não é absoluta porque pintalgada de quando em vez por um pequeno oásis de um verde muito vivo, que se percebe ser raramente habitado, mas que inegavelmente acarinhado, como o atestam as pequenas plantações em socalcos de milho e cana de açúcar, cujas folhas e hastes superiores se bamboleiam ao sabor de um vento forte que chega a ser refrescante.
O almoço foi no Babilónia, que mais que um restaurante é a face visível do Projecto de Desenvolvimento Comunitário de Lajedos, animado por uma ONG fundada por Leão Lopes, um dos mais respeitados artistas do país, de que foi ministro da Cultura. A Babilónia é uma verdadeira surpresa, pela novidade que encerra, pela frescura e criatividade que transpira, pela extrema simpatia com que acolhe clientes e visitantes. E, já agora, pela qualidade da ementa. A casa estava cheia de grupos de turistas, sobretudo franceses, que se aventuram a pé pelo interior de Santo Antão. Ali, como em muitos outros locais, desta e de outras ilhas, sente-se a celebrada morabeza do povo cabo-verdiano. Foi nesse mesmo espírito que o escriba saudou quatro pessoas para quem fora preparada uma mesa especial em local mais recatado. Ignorava quem seriam, mas “Tony”, o nosso atentíssimo guia, logo se aproximou para segredar: “Aquela senhora é a nova presidente da câmara de Porto Novo”.
Nas eleições autárquicas de domingo, 1 de dezembro, o MpD, o partido no poder, averbou em Porto Novo uma das suas mais inesperadas derrotas. Mário Fonseca, um dos dinossauros do poder local, economista e alto quadro da banca, perdeu a câmara da capital da ilha para o PAICV, o antigo partido único, que, ainda sob a designação de PAIGC, conquistou a independência do país em 1975.
Há que dizer que em breve Santo Antão se tornou num reduto da oposição ao regime de partido único. Nesta ilha, no início dos anos oitenta, registaram-se mesmo alguns incidentes de grande violência, na contestação à aplicação de uma muito contestada lei da reforma agrária, que procurava alterar um secular sistema de propriedade fundiária. “Tony”, o nosso guia, então muito jovem, esteve ele próprio envolvido nesse combate contra essa política do PAICV, vindo inclusivamente ser preso por escritos que então assinou na imprensa.
Todas as três câmaras da ilha estavam nas mãos do MpD, e é este contexto que explica porque a vitória do PAICV em Porto Novo foi uma das grandes surpresas eleitorais. O escriba, que jamais se esquece que, antes de o ser, já era um velho repórter, não resistiu e quis conhecer a candidata vitoriosa, no que foi acompanhado por todos os companheiros. Elisa Pinheiro, assim se chama a nova presidente, é a única mulher eleita para dirigir uma das 22 câmaras do país. A esta novidade de género, acrescem outras: é relativamente jovem (47 anos), factor que mobilizou o determinante voto de uma juventude desiludida e sem horizontes; é arquitecta , licenciada e doutorada pela Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa; tem dupla nacionalidade, cabo-verdiana e portuguesa; e é uma retornada, na medida em que trocou a segurança e estabilidade de Lisboa, onde chegou a trabalhar num dos mais importantes ateliês, pelo desafio de uma gestão autárquica numa das mais abandonadas mas promissoras ilhas do país. Razões de sobeja para uma fotografia de família, tendo ao centro a nova edil e o escriba-mor (ver fotografia), que não perdeu o ensejo para uma portuguesíssima “cunha”: concluir a estrada que liga Porto Novo ao Tarrafal de Monte Trigo. “Cunha nenhuma”, respondeu de pronto a presidente eleita, “tem toda a razão e é um dos muitos pontos do nosso programa eleitoral”.
Eram horas de regressar a Porto Novo e preparar o catamaran para prosseguir para o Fogo. A última parcela da viagem no Hiace foi particularmente divertida. Os protagonistas voltaram a ser os nossos convivas crioulos: Adelino Pires, o motorista, e, a seu lado, António Santos, “Tony”, o guia. Já aqui se disse das simpatias deste último pelo MpD, de que chegou a ser deputado nacional por Santo Antão, tendo recusado vários convites para candidaturas autárquicas. Do que não se disse, foi das antipatias de Adelino pelo mesmo MpD. Que o levaram, no plano autárquico, a candidatar-se ao seu concelho de Ribeira Grande pela UCID, uma pequeníssima formação com representação parlamentar, mas como último dos suplentes. Já no plano nacional, Adelino assumiu-se claramente como um simpatizante do PAICV. E foi ouvi-los, numa disputa permanente, sobre o que fora a obra de um e de outro partido na ilha. Bom conhecedor de todas as estradas e caminhos, Adelino ia atribuindo a autoria de quanto íamos percorrendo a um ou outro dos dois partidos que se vão alternando no governo do país, com vantagem clara para o PAICV. Já “Tony”, muito mais político e articulado que o antagonista, não deixou de lhe dar constante réplica, insistindo em particular na necessidade do PAICV “aprender o que é a democracia”. Um diálogo sempre divertido, espicaçando-se mutuamente e arrancando da assistência, nos bancos traseiros da Hiace, sonoras gargalhadas e constantes provocações. Um debate usando toda a panóplia de argumentos. Mas a um, apontado por Adelino, “Tony” não foi capaz de responder: “Está a ver ali aquela cabra melhorada ao pé das outras? É porque é do PAICV!”
Antes de nos deixar no cais de Porto Novo, para a transfega para o “Cachaça”, a Hiace branca fez uma última paragem. Alguém pedira ao motorista para se deter numa loja do chinês, para comprar umas coisinhas que faziam falta no barco. Parecendo ofendido, em vez do chinês, deteve-se no minimercado Lopes, à entrada da cidade. “Esta loja traz quase tudo de Portugal”, justificou-se, com inteira razão. E nele se encontrou quase do tudo quanto era necessário: um pente para o cabelo, palha de aço, sabonete, detergentes para as casas de banho e outro para lavar a roupa à mão, e molas para a pendurar. É assim a vida a bordo.José Pedro Castanheira
Diário de Bordo 5
A viagem entre São Vicente e Santo Antão (duas horas de mar para cobrir as 9 milhas náuticas, pouco mais de 16 quilómetros) nao teve história digna de figurar neste Diário de Bordo. Adiante, pois, que não há tempo a perder com miudezas de percursos semelhantes aos de uma vulgar ida às Berlengas… Fundeado o “Cachaça” na baía de Porto Novo, um pescador tratou de nos levar num bote para o cais, de onde partimos à descoberta de Santo Antão, a ilha verde.
À saída do terminal do ferry aguardava-nos o nosso guia, António Santos ou “Tony”, um funcionário público reformado e ex-deputado do MpD, o partido do governo, e que se dispôs gentilmente a acompanhar esta expedição. O meio de transporte foi, mais uma vez, uma carrinha Toyota Hiace, com lotação para 15 pessoas desde que bem arrumadinhas, e que é o principal veículo de transporte público em Cabo Verde. A Hiace deste primeiro dia em Santo Antão foi a de um pequeno empresário, Adelino Pires, que conhece todas as curvas e contracurvas e sobretudo as subidas e subsequentes descidas.
Segunda maior ilha do país em termos de superfície, Santo Antão está dividida em duas partes bem distintas: o lado sul, bastante mais plano, exposto ao sol, e seco, seco, seco; e o lado norte, muitíssimo montanhoso, fresco, e verde, verde, verde. A passagem do lado sul, onde fica a capital, Porto Novo, para o lado norte, onde vive a maioria de uma população em sucessiva perda demográfica, faz-se principalmente através de uma estrada montanhosa, herdada do tempo colonial. É uma viagem fantástica, para se fazer devagar-devagarinho, que revela as diferenças flagrantes entre as duas metades da ilha, e de uma beleza indescritível. O cronista, que já estivera na ilha por duas vezes, confessa que lhe escasseiam os recursos para a descrever, desenhar, pintar, modelar. Faltam mesmo os adjetivos que mais de adequem à paisagem de uma natureza em bruto, tingida de múltiplos tons de verde, a que o homem se foi timidamente adaptando e transformando ao longo de séculos.
A chamada estrada da corda, que percorre o topo das muitas montanhas que ora se sucedem, ora se cruzam, é um fascínio de causar arrepios. O miradouro preferido é o que nos revela, de um lado, cá em baixo, a Ribeira da Torre, enriquecida no seu caudal por uma cascata de muitas centenas de metros de altura, e, do outro, a Ribeira Grande. Duas ribeiras que se unem antes de desaguarem no oceano na cidadezinha que foi buscar o seu nome a uma delas, a Ribeira Grande. Sob o risco de ser apressado e injusto, até porque ainda nem conhece todas as ilhas, o cronista atreve-se a dizer que esta será, muito provavelmente, a paisagem mais espantosamente bela de Cabo Verde (ver fotografia). Uma afirmação certamente ousada, a ser confirmada, ou não, daqui a uma semana, quando se concluir este périplo por Cabo Verde em 15 dias.
O almoço, o desejado e merecido almoço, foi no restaurante Melícias, na estrada que corre paralela à Ribeira da Torre. É uma das inúmeras ribeiras que nascem em parte incerta nas montanhas e que, na época chuvosa, que se concentra nos meses de julho a setembro, correm, fresquisssimas, abundantes, mesmo perigosamente imparáveis, até ao Atlântico. Sobre o almoço, o leitor que de preparar para salivar, que vale a pena. Um manjar, pela sua variedade, riqueza e bem servir, digno dos deuses: esmoregal (o peixe que continua a liderar as preferências) e atum, carne de porco e frango assado, ovos de codorniz, fruta-pão, mandioca, inhame, abóbora, batata doce, lentilhas, arroz, batata frita, salada… Tudo fresco, de qualidade e em quantidade. Com muita cerveja Strela, sumo de cana de açúcar e de maracujá, e café, acompanhado do famoso grogue de Santo Antão. Contas feitas, deu 13 euros por cabeça, já com gorjeta. O leitor acha caro?
O repasto nem foi muito demorado. Melhor, no entanto, fizeram os outros grupos de clientes deste agradável restaurante ao ar livre na beira da estrada, que trataram de o encomendar antecipadamente. Pequenos grupos, todos estrangeiros, várias nacionalidades, de caminhantes ou montanhistas, que vêm no ferry de São Vicente, tomam uma Hiace em Porto Novo, passam para o outro lado da montanha, hospedam-se em pequenos hotéis, pensões e residências particulares, e durante alguns dias se atiram aos numerosos trilhos das montanhas, numa descoberta sempre renovada das originalidades e belezas menos conhecidas de Santo Antão. Um tipo de turismo que até resistiu aos tempos negros da pandemia, sustentável, portanto, que respeita a identidade da ilha e que nada tem a ver com o modelo de turismo de massas, importado por outras ilhas e com consequências absolutamente devastadoras. Foi o que, ao final da tarde, nos explicou Leão Lopes, um intelectual e artista de renome, que foi ministro da Cultura em anterior governo do MPD, e que aposta com todas as suas forças num modelo de desenvolvimento alternativo para a sua ilha. “Os responsáveis políticos do país, governo e oposição, têm de perceber que Santo Antão é uma dádiva!”
A jornada santoantonense prosseguiu até à Ponta do Sol, um minúsculo porto de pesca na extremidade da ilha, onde em tempos foi construído um aeródromo, que, por demasiado curto na sua pista, sujeita a ventos cruzados, intensos e irregulares, rapidamente foi desativado (ver fotografia). De modo que Santo Antão, apesar da sua grande extensão, é, de par com a pequena e rebelde Brava, das únicas ilhas a que não há acesso por avião, o que constitui uma aparente desvantagem em relação às demais, mas que também pode ser encarada como uma vantagem de longo prazo.
Pela Ponta do Sol passa, a acreditar no que se lê num pequeno memorial, o meridiano que serviu de base às intensas negociações políticas e geostratégicas que, no século XV, deram origem ao famoso Tratado de Tordesilhas, através do qual os reis de Portugal e Espanha dividiram entre si o planisfério em matéria de descobertas marítimas a promover (ver fotografia). Um tema assaz controverso na historiografia mundial e que continua a fazer o encanto dos historiadores sobre aquela época, em que ambas as potências ibéricas deram novos mundos ao mundo.
José Pedro Castanheira
(4 de dezembro, no porto de Porto Novo, ilha de Santo Antão)
Diário de Bordo 4
A segunda etapa desta Volta a Cabo Verde foi cumprida na noite de 2 para 3 de dezembro. Ligou as ilhas de São Nicolau a São Vicente, mais exatamente – que o cronista prima por ser rigoroso – o porto do Tarrafal ao do Mindelo. Ao todo, 47 milhas náuticas, ou seja, 87 quilómetros. Largada do Tarrafal pelas 22.00 horas, chegada ao Mindelo pouco depois das 07.00 horas, cabendo ao cronista fazer parte do primeiro turno de vigilância noturna. A noite até começou bem, com um vento a soprar forte e a empurrar o catamaran “Cachaça”, rápido e lampeiro, de vela grande e genoa abertas. Infelizmente o vento, que como se sabe é um ser incontrolável, passou a soprar demasiado, o que obrigou o skiper a usar da prudência e a recolher a genoa. E foi ver quatro homens e oito mãos, à uma, a puxar o cabo que enrola aquela vela. Quando no final do turno desceu ao camarote, no casco de estibordo da proa, o cronista não imaginava o que o esperava. O vento rebelara o mar e durante o resto da noite, escura como breu, foram chapadas atrás de lambadas das ondas no casco, a salpicar o sono justo de quem bem merecia um descanso para melhor poder enfrentar a jornada seguinte.
Com isso, nem se deu pela passagem do veleiro pela ilha de Santa Luzia, uma das dez do arquipélago e a única que, por não ser povoada, foi excluída deste programa de festas. Escondida e envergonhada no escuro da noite, de Santa Luzia sobrou apenas a luz titubeante de um pequeno e fraco farol, avistado de muito longe pelo vigia de serviço.
Na marina do Mindelo, a única existente em Cabo Verde, a tripulação estreou-se na delicada e complexa operação de acostar o catamaran, uma embarcação muito maior que os veleiros tradicionais a que estes marinheiros amadores se acostumaram. Tomado o pequeno-almoço no Café Royal, seguiu-se um banho generalizado dos sete tripulantes, o que já não acontecia há alguns dias. O balneário da marina é um pouco decrépito, sem vestuários e apenas com água fria, ainda por cima racionada. Mas soube muito bem, passar água e sabão e mais água por todo o corpo e vestir roupagem limpa, bem cheirosa e engomada. Um homem até parece que rejuvenesce.
A nossa guia no Mindelo foi a Ana Cordeiro, uma portuguesa que trocou há muitos anos Portugal por São Vicente, onde desenvolveu trabalho de monta, por todos reconhecido, no âmbito do Instituto Camões. O escriba conheceu-a na sua ilha de adopção há quase trinta anos, quando ela o convidou a apresentar um livro que provocou acesa polémica em Cabo Verde, chamado “Quem Mandou Matar Amílcar Cabral?”. Talvez possamos voltar a esse assunto mais à frente neste diário. Agora, há que registar o passeio que a Ana nos proporcionou pelas ruas, praças e edifícios como o Centro Cultural do Mindelo, o Clube Náutico, a Câmara Municipal (que conserva na fachada o escudo da antiga potência colonial), o Palácio Presidencial , a igreja de Nossa Senhora da Luz e o mercado municipal. Memórias do Mindelo, que viveu a sua glória nos séculos XVIII e XIX, graças à fantástica, larga e segura baía, virada para Santo Antão e protegida pelo Monte Cara, onde nem é preciso grande imaginação para nele descortinar o perfil de um ancião em que alguns notam semelhanças a George Washington.
Do antigo e afamado porto destinado a abastecer de carvão os navios ingleses no seu permanente vai-vem entre a Europa e a América já pouco resta. Ainda assim vale a pena atentar nos painéis de azulejo da Praça Estrela – hoje transformada num mercado africano – e que ajudam a reconstituir, a azul e branco, o que foi a cidade nos seus anos de ouro, em que a comunidade britânica ali instalada eram quem ditava mais cartas.
No rápido deambular pelo centro histórico, valeu a pena subir os três andares da Torre de Belém, um pastiche da genuína ali edificada vai para um século e na qual o Governo cabo-verdiano aproveitou para criar um pequeno mas interessante espaço museológico. Temia-se que estivesse repleta de hordas de turistas despejados, manhã cedo, por um navio cruzeiro mastodôntico, mas felizmente para nós não havia quase ninguém. No alto deste émulo da Torre de Belém desfruta-se uma belíssima vista sobre a baía (ver fotografia), pejada de embarcações de todos os tipos, feitios e nacionalidades, de pesca, recreio, comércio e carga, a comprovar que São Vicente permanece toda ela virada para a atividade portuária – e nisso reside muito da sua singularidade histórica e cultural. Com a diferença que ao depósito do carvão britânico sucedeu a indústria menos suja do turismo.
O final da manhã esteve reservado para uma atividade lúdica: um banho na praia de S. Pedro, na companhia de … tartarugas. Alugou-se uma Hiace à saida da Marina e lá fomos, quase todos, de trouxa debaixo do braço. São tartarugas residentes, visto que se habituaram a que pescadores e turistas, mais estes que aqueles, as alimentem diariamente, dispensando-as do esforço a que todo o animal, incluindo o bicho-homem, é obrigado. O negócio é simples. Um pescador – no nosso caso, o senhor Luís, presidente da Associação de Pescadores da Praia de S. Pedro – leva os interessados de barco até meio da baía, chama aqueles grandes répteis marinhos acelerando o motor fora de bordo e jogando para a água pedaços de peixe. Consta que o isco preferido é a sardinha, e minutos depois é vê-las a aproximarem-se do barco, cabecinha fora de água ou a nadar pachorrentamente a meia nau. O mar é tranquilo, a água é limpissima e amena, quem quiser pode mergulhar, o senhor Luís até disponibilizou óculos submarinos. O cronista nem hesitou (ver fotografia) e lá esteve, divertido, a confraternizar com os bichanos, alguns deles com um bom metro de comprimento e certamente que muitas dezenas de quilos. São amáveis, aproximam-se sem temor e até se deixam tocar pelos mãos e pés dos banhistas.
O almoço foi num dos vários restaurantes da praia. Peixe grelhado para toda a gente. Na escolha da estreita ementa, ganhou, contra a garoupa e o atum, o esmoregal, que passou a ocupar o top das preferências gastronómicas.
Ao volante do seu Hiace branco, limpo a preceito, o José Delgado levou-nos pelo interior da ilha. No alto do Monte Verde, que de verde tem muito pouco, os horizontes estavam demasiado toldados pela névoa. Da cidade do Mindelo, que não cessa de se estender, montanha acima, fazendo lembrar as favelas brasileiras, pouco se conseguia ver em pormenor, salvo as colunas de fumo que saem em contínuo da queima desordenada e caótica de lixo urbano. A leste, recortava-se a ilha de Santo Antão, uma muralha imensa e escura de rocha, esmagadora. A oeste, a silhueta de Santa Luzia não passava de uma vaga impressão. Já a norte era perfeitamente visível a Baía das Gatas, que acolhe todos os anos um dos mais famosos festivais de Músicas do Mundo (ver fotografia).
Uma das ilhas mais áridas e secas, São Vicente não tem muito mais que ver. São Vicente é o Mindelo, a segunda cidade do país e o seu tradicional pólo cultural. E ao Mindelo regressámos. O nosso improvisado guia levou-nos ao cemitério. Fazia questão de nos mostrar a campa da mais famosa das filhas de São Vicente: Cesária Évora. O escriba sabe, por experiência própria de muita reportagem que assinou, mundo fora, que um cemitério é uma especie de cartão de visita do lugar ao qual dá serventia. O do Mindelo, que nunca percorrera, não é excepção e valeria mais tempo e atenção. Fiquemo-nos por Cesária. A “diva da morna”, como ficou conhecida, que passeou a música e a poesia cabo-verdianas por todo o lado, é a figura mais conhecida, admirada, cantada e adorada do país. Na sua ingenuidade, o cronista admitiu que a campa de Cesária tivesse a dignidade que a sua imagem e memória recomendariam. Puro engano. O túmulo onde repousa só se distingue dos demais por não ter uma cruz, e por referir apenas a identidade da mãe, percebendo-se pela omissão que era filha de pai incógnito. A placa de mármore parece ter sido objecto de violação. Quanto a flores, muitas, eram todas de plástico, que o tempo e o sol se encarregaram de quase descolorir. Valham as muitas conchas e búzios que cobrem a campa, votada a um semi-abandono. A fabulosa intérprete do “Sodad” merecia mais respeito.
Cesária está por todo o lado. A começar pelo fabuloso painel esculpido por Vlils numa das paredes no centro histórico. E por falar em cultura, seria criminoso omitir o Centro Nacional de Artesanato e Design, CNARTE. Edifício imperdível, pela ousadia, cores e imaginação, a fazer lembrar o que também foi o centro Georges Pompidou em Paris.
À noite, no restaurante Tchicau onde a tripulação se reuniu, depois de uma muito engraçada conversa com o escritor cabo-verdiano Germano Almeida, o jantar foi literalmente regado pelo embalar da música de Cesária, na voz da cantora Idília, acompanhada à viola por Manecas. O manjar, com que a proprietária brindou a marinhagem do “Cachaça”, foi digno dos deuses. Ainda assim, foi a música de Cesária, cantada, batucada e até dançada por estes marinheiros e acompanhantes, que mais perdurará nos anais desta Volta a Cabo Verde.
De regresso ao seu camarote, à falta de inspiração, o cronista trocou o iPad pelo remanso quente do saco-cama. E não admira que tenha adormecido a cantarolar, embalado, já não sabe se por uma morna se por uma coladera.
José Pedro Castanheira
(4 de dezembro, Porto Novo, ilha de Santo Antão)
Diário de bordo 3
“Bem vindos a Cabo Verde”. A saudação, à chegada a São Nicolau, foi expressa com um sorriso de boas vindas e envolta num abraço por José Cabral, que se dispôs a ser o nosso guia na visita à ilha que marcou a primeira etapa desta Volta a Cabo Verde em 15 Dias. Militante apaixonado da história e do património da ilha e das suas especificidades, fez questão de marcar a fronteira em relação à ilha do Sal da atualidade. “Sal não é Cabo Verde. No final da vossa visita, compreenderão porquê”, sublinhou, gestos largos a reforçar quanto dizia, para sublinhar o orgulho que exala pela terra que viu nascer Baltasar Lopes, o mais reputado dos escritores cabo-verdiano, e onde foi criada a mais famosa e internacional das mornas crioulas.
Depois das peripécias que marcaram a partida do Sal, esta expedição lá arrancou, com um dia de atraso em relação ao previsto. O monocasco “Prosecco”, da charter espanhola Alboran, não estava em condições de navegar com o mínimo de segurança, pelo que foi substituído por um catamaran. Tudo somado, ficámos a ganhar com a troca. A começar pelo próprio nome: “Prosecco” não é nome que se dê a uma embarcação de recreio, cuja tripulação encara o andar à vela como um prazer e uma forma de celebrar a alegria de viver, a boa disposição e a amizade. Já o catamaran foi batizado com um nome muito mais apropriado ao espírito e à letra desta singularíssima regata. Calcule o leitor que o novo veleiro chama-se “Cachaça”! Ou mais corretamente “Cachaca”, mas aqui para nós alguém se enganou ao escrevê-lo, ou porque não sabia grafá-lo corretamente, ou porque no estaleiro onde o catamaran foi construído não havia uma cedilha, o adereço que faz com que o vocábulo cachaca seja promovido a cachaça. O que é certo é que quando a tripulação tomou posse do catamaran houve quem entoasse, baixinho, a conhecida estrofe “há quem diga que cachaça é água, cachaça não é água não…”
Entre o Sal e São Nicolau foram 16 horas de viagem, para cobrir as 86 milhas náuticas que separam os portos de Palmeira e de Tarrafal. Ou seja, 159 quilómetros. A viagem não teve história, salvo um desagradável episódio de caráter gastro-intestinal de um dos tripulantes, e um pequeno acidente com o escriba-mor. Ao cair da noite, estando a dormitar no seu luxuoso camarote, esqueceu-se de fechar hermeticamente a escotilha e acordou como se tivesse levado com um balde de água em cima. Pelo menos foi isso que logo pensou, rogando pragas ao presumível autor de tamanha graçola, para depois perceber que fora uma onda mais grandona que lambera o casco
e penetrara pela pequena janela, como um duche de água fria. Quanto ao resto, a rota foi cumprida quase sempre só à vela, com a tripulação a revezar-se durante a noite à roda do leme em equipas de dois, por turnos de duas horas. Ao escriba calhou, como parceiro de vigia noturna, o filho Afonso, o barba azul e marinheiro faz-tudo de anteriores aventuras.
Eram sete da manhã quando o Cachaca ou Cachaça fundeou na baía do Tarrafal de São Nicolau. O cronista já o escreveu em anteriores diários de bordo, mas não se cansa de o repetir: a aproximação a uma ilha pelo lado do mar, ao nascer do sol, no silêncio da madrugada, é um dos momentos de felicidade para qualquer marinheiro. O transporte até ao cais do Tarrafal foi assegurado por um barco de pesca artesanal. Recebidos por José Carvalho, começámos o dia com um lauto pequeno-almoço no restaurante de Dona Bia: catchupa, omelete, peixe assado, chouriço, tostas mistas e café com leite. Com o estômago acondicionado, preparámo-nos para uma verdadeira lição de história ao vivo por parte do nosso guia, autor de quase uma dezena de livros, entre os quais duas ficções em que se propôs continuar a saga de “Chiquinho”, o nome que Baltazar Lopes deu àquele que é considerado o melhor romance da literatura cabo-verdiana.
Numa Toyota Hiace, subimos pelas montanhas agrestes da ilha, descemos aos vales profundos, admiramos os seus dragoeiros milenares e os terrenos férteis do norte da ilha, onde se cultiva banana, cana de açúcar, milho, feijão, manga, papaia, maracujá – e por momentos julgámos que estaríamos na Madeira. Da Fajã de Cima, alcançámos a Fajã de Baixo, de onde virámos para a Ribeira Brava – e a toponímia fez-nos recordar os Açores.
A Ribeira Brava, a capital, fica bem no interior, no que contrasta com as homólogas das outras ilhas. Pudera: alvos das frequentes investidas e saques de piratas e navios de nações inimigas de Portugal, as populações costeiras procuraram refúgio no interior montanhoso e de difícil acesso, acabando por se concentrar num lugar conhecido por Ribeira Brava e que ainda hoje, em tempos chuvosos (e este ano foi um deles), faz jus à sua fama bravia e intempestiva. Na Ribeira Brava, o MPD sofrera na véspera um dos seus muitos reveses nas eleições autárquicas, marcadas por uma profunda derrota do partido no poder. Na câmara municipal, que passou para as mãos do PAICV, um polícia vedou-nos o acesso à sala da assembleia municipal. Compreende-se e respeita-se: era lá que estavam depositadas as urnas com os votos das eleições de domingo, dia 1, jornada aziaga para o partido da direita liberal do primeiro-ministro Ulisses Cortês. No edifício que acolhe a sede do município, e como é corrente nas derrotas eleitorais, respirava-se um ambiente semelhante ao de um velório…
Na cidadezinha, de um asseio assinalável, curvámo-nos diante da estátua de Baltazar Lopes e do busto do médico e filantropo Júlio José Dias; visitámos o antigo seminário, onde estudaram figuras grandes da história de Cabo Verde, como os pais de Amílcar Cabral e Aristides Pereira. A Sé Catedral, restaurada a preceito (ver fotografia), serviu de sede ao bispado que chegou a ser de Cabo Verde e das Costas da Guiné.
Na Preguiça, o primeiro porto da ilha, na época que marcou o seu auge político e administrativo, ainda lá estão meia dúzia de canhões de bronze, o pouco que resta de um velho forte português, construído para proteção das incursões de piratas e corsários de vários matizes. Um padrão regista a passagem pela ilha de Pedro Álvares Cabral, na viagem que assinalou a descoberta, em 1500, do Brasil (ver fotografia). Terá este navegador passado simplesmente ao largo, ou aproveitado para fazer a sua derradeira aguada antes de rumar a Oeste, em demanda do novo continente? Aí está uma dúvida nunca desfeita e motivo de polémica entre investigadores e historiadores. À vasta e acolhedora baía do sul da ilha foi dado o nome da nau São Jorge, pertencente à frota de Cabral e que então se afundou algures no Atlântico.
Nesta jornada, de encher o olho, o coração e an alma, não houve tempo para ir à Praia Branca. Pena. Foi lá que nasceu em 1954, numa festa de despedida dos homens que iriam embarcar para as roças de Cacau de São Tomé e Príncipe, que foi criada a morna “Sodade”. O seu criador era um sanicolaense de nome Armando Zeferino Soares, que só recentemente viu consagrados judicialmente os seus indiscutíveis direitos de autor.
De regresso ao Tarrafal (um dos quatro tarrafais que existem no arquipélago e que devem o nome a uma planta que se chama tarrafo), a visita culminou com uma rápida ida ao pequeno Museu da Pesca (ver fotografia). Este centro interpretativo está instalado na sede da antiga SUCLA, a Sociedade Ultramarina de Conservas, Limitada, criada em 1942, e que se dedicou à conserva do atum, de que os mares de São Nicolau são riquíssimos, tal como em espadarte. Com genuíno prazer, a tripulação lavrou uma saudação muito especial no livro de visitas do museu. E inspirado na fórmula como os baleeiros norte-americanos encerravam os seus diários de bordo, também este cronista aqui deixa registado: “So ends this day”.
Até amanhã, em São Vicente.
José Pedro Castanheira
(No catamaran Cachaça, a navegar entre as ilhas de São Nicolau e São Vicente)
Diário de bordo 2
Pois cá estamos nós no Sal. No Sal?, perguntar-se-á o leitor mais atento, que ontem leu, e bem, este cronista a despedir-se do seu público com qualquer coisa como um “até amanhã em São Nicolau”. Pois é, estas coisas que parecem simples, das viagens que até são preparadas ao detalhe, ou milimetricamente, ou ao segundo, como se queira, têm sempre alguns imponderáveis, ou imprevistos, ou surpresas que tudo podem estragar. Umas podem ser bem agradáveis, pela novidade que acrescentam e qualificam; outras, pelo contrário, só perturbam e até são susceptíveis de deitar a perder tudo quanto fora meticulosamente programado.
O leitor não é tolo e portanto já percebeu que este cronista hoje não tem boas notícias para lhe dar. A esta hora, o marinheiro que deveria estar de binóculos bem assestados no cockpit ou empoleirado no topo do mastro real já deveria ter gritado a plenos pulmões: “São Nicolau à vista!” Ora acontece que esta afoita tripulação, que se propunha iniciar no sábado, 30 de novembro do ano da graça de 2024, a partir da ilha do Sal, uma inolvidável Volta a Cabo Verde em 15 Dias, ainda esta nessa mesmíssima ilha, na Baía de Palmeira, de onde era suposto o veleiro “Prosecco” ter zarpado ao final da tarde – tal era o plano de bordo sabiamente delineado pelos irmãos Blasques, Francisco e João, a dupla de experimentados skippers, o primeiro, o Francisco, o mais novo, como skipper-mor, o segundo, o João, naturalmente que menos novo, como seu adjunto, ou assessor, ou braço direito.
O indispensável abastecimento fora assegurado no supermercado Sucata – uma designação algo premonitória, quase que antecipando o que viria a acontecer. A loja, das poucas que ainda escapa à rede das lojas chinesas, fica nos Espargos, a cidadezinha que serve de capital desta ilha do Sal. Cerveja, claro, muita água, bacalhau congelado, batata frita, um saco gigante de amendoins, cinco litros de vinho tinto, uma garrafa de rum cubano e outros comes e bebes indispensáveis a uma saudável navegação e a uma alegre confraternização.
Enquanto isso, parte da equipagem avistou-se com um muito bem sucedido empresário de hotelaria, Manuel António Lobo. Natural do Sal, ou salense, mais precisamente da vila de Santa Maria, todos o conhecem pelo nominho de “Patone”, que nos deu uma panorâmica da economia, mas também da política da ilha, que descobriu no turismo a galinha dos ovos de ouro, responsável pela regular aumento do PIB do país.
Mais ou menos à hora aprazada, a tripulação tomou posse do veleiro, propriedade da empresa charter espanhola Alboran, com negócios em Maiorca, Canárias, Cuba e, claro está, Cabo Verde. “Prosecco”, assim se chama o iate , da construtura francesa Jeanneau, modelo Sun Odyyssey 519, de matrícula de 2018 (ver fotografia). Como no arquipélago só há uma marina no Mindelo, as embarcações de recreio e pesca ficam habitualmente fundeadas ao largo, no caso na baía de Palmeira. A tripulação, a bagagem, os víveres e outros utensílios e apetrechos – como o precioso iPad em que o cronista está a digitar – foram transportados para o veleiro num velho bote de pesca artesanal, de motor fora de bordo. Seguiu-se o que as regras da boa náutica e da mais elementar prudência mandam: confirmar se está tudo nos conformes. Ou seja, âncora, luzes, rádio, combustível, água potável, óleo, dinguy, coletes salva-vidas, defensas, cabos, sei lá que mais, pois que a respetiva lista se espraiava por mais de uma página A4, havendo que tudo verificar e testar. O responsável local da Alboran, acompanhado por dois colaboradores de nacionalidade cubana, estava nervoso e apressado. Até se compreendia, visto que completava nesse dia a bela idade de meio século. Todos os equipamentos mais delicados foram passados a pente fino: o seguro morreu de velho e nunca tínhamos navegado neste barco, nem sequer neste modelo, além de que a experiência ensina que navegar em Portugal ou na Europa não é exatamente a mesma coisa que em África. Um dos últimos equipamentos testados foi a sonda, um aparelhinho que vai mostrando a cada momento a profundidade das águas a que o barco navega. Ora acontece que a sonda tinha um pequeníssimo problema: não funcionava. Pura e simplesmente. O que impedia que nos fizéssemos ao mar. Para que o leitor melhor entenda: navegar sem sonda é como conduzir um automóvel numa estrada serrana, sem faróis, numa noite escruta e de cerrado nevoeiro. Só um louco ou um suicida!
A discussão que se seguiu foi brava. E mais brava ficou quando se percebeu que os responsáveis da Alboran já sabiam há vários dias que a sonda pifara, que nada fizeram para a substituir e nem sequer avisaram estes clientes vindos de Lisboa. A conversa foi subindo de tom, mas o pudor obriga este relator a poupar os seus leitores. Dela dir-se-á tão só que decorreu em português, em espanhol na sua versão cubana e em crioulo cabo-verdiano, entremeada por algumas expressões vernáculas em inglês mas já incorporadas pelas outras línguas nacionais. Em desespero de causa, ainda se tentou consertar a tal sonda, mas apesar dos rogos à Senhora dos Navegantes e aos muitos santos protetores dos homens e mulheres do mar, o aparelhinho não se condoeu (ver fotografia). Que fazer, então?
As alternativas não eram muitas nem brilhantes. Fazer as malas, regressar a Lisboa e processar a charter espanhola sem sequer ter iniciado a Volta a Cabo Verde, era um cenário humilhante, a raiar o absurdo, quem nem valia a pena equacionar. Navegar sem sonda era impensável – hipótese só para loucos furiosos ou para pilotos que conhecessem de olhos fechados os fundos das nove ilhas, não incorrendo em riscos aquando da aproximação aos vários portos. Substituir a sonda, só seria possível no Mindelo, termo da segunda etapa, mas ninguém garantia que naquela marina houvesse um modelo que se ajustasse à personalidade do “Prosecco.” Claro que haveria sempre a possibilidade de contratar um skipper local, disponível, e conhecedor das singularidades da costa cabo-verdiana. A recusa fez quase a unanimidade, porque a experiência mostra que um skipper estranho, que ninguém conhece, constitui frequentemente um fator capaz de estilhaçar em cacos o ambiente quase familiar que esta equipa forjou ao longo de vários anos de navegação conjunta. Restava uma derradeira alternativa: mudar para uma outra embarcação da Alboran, fundeada mesmo ao lado, que tinha o senão de ser um catamaran, um veleiro de características totalmente diferentes, no qual ninguém alguma vez viajara – nem mesmo o mais experimentado dos comandantes.
A decisão foi sendo tomada, noite dentro, ao longo de um democrático plenário. À falta de melhor, a opção catamaran foi-se impondo como inevitável. Com o inconveniente, infelizmente inultrapassável, de, ainda que estando disponível, só poder ser aparelhado durante a manhã.
Esta a razão pela qual permanecemos no Sal mais um dia que o previsto, com prejuízo inevitável da programação. A largada está prevista sensivelmente para as 14 horas. Depois, no Atlântico, cedo deixaremos de ter rede telefónica e internet. Como se disse, nenhum de nós tem qualquer experiência de catamaran. A coisa promete. Mas confiemos, porque não poderíamos ter começado pior esta Volta a Cabo Verde. Esperemos, pois, que no dia 2 já possamos saudar os leitores a partir de São Nicolau.
José Pedro Castanheira
(Oceano Atlântico, num catamaran entre as ilhas do Sal e de São Nicolau)
Diário de bordo 1
SAL. Assim se chama a ilha onde iniciamos a Volta a Cabo Verde em 15 dias. Volta que, convém que se esclareça – pois que haverá sempre ouvintes e leitores desconhecedores, ignorantes ou simplesmente distraídos – , não será em bicicleta, muito menos de avião, nem sequer num cruzeiro daqueles de dez ou doze andares, que costumam despejar toneladas de turistas apressados em Lisboa ou no Funchal. Será uma volta num pequeno veleiro, tripulado por um grupo de sete amigos, de muitos e variados ofícios, quase todos reformados, e que, caso tudo corra pelo melhor, deverá escalar todas as ilhas de Cabo Verde. Todas não, diga-se em respeito pela verdade – o valor supremo que deve nortear um repórter, mesmo quando enverga as vestes de marinheiro, como é o caso. É que não iremos a Santa Luzia, a única das dez ilhas cabo-verdianas que não é habitada pelo bicho-homem, mas que não deixaremos de avistar e saudar, com a devida e mui respeitosa vénia, aquando da segunda etapa, que ligará São Nicolau a São Vicente.
Voltemos, porém, ao Sal, a palavra e o conceito com o qual nos estreámos como cronista-mor desta expedição marítima para os ouvintes de RDP África. Planeada até ao milímetro, que é como quem diz até à milha náutica, aterrámos no Sal no dia 28, para, com tempo, nos aclimatarmos, abastecermos de víveres para duas semanas no mar, e sobretudo nos adaptarmos ao barco, o veleiro de nome “Prosecco”, alugado a uma empresa espanhola sediada em Maiorca e que nos aguarda no porto de Palmeira.
Muitos dos que já viajaram até Cabo Verde limitaram-se a ficar pela ilha do Sal. Principal destino turístico do arquipélago, ela passou a ser a sua ilha mais conhecida internacionalmente, muito mais que São Vicente, da cantora Cesária Évora, ou que Santiago, onde reside a capital, Praia. Alguns dirão, do alto da sua sabedoria, que, com essa estada pelo Sal, ficaram a conhecer o país, e até gostaram. Nada de mais completamente errado. Aquele Sal em que aterraram, onde passaram um fim de semana de folga ou mesmo uma semana de férias, desfrutando dos luxuosos hotéis da Ponta Preta, passeando-se nas esplêndidas praias de areia branca, espreguiçando-se ao sol e banhando-se nas águas limpas e cristalinas de Santa Maria, esse Sal é apenas uma parte da ilha, um oásis artificial e estrangeiro que tem pouco, muito pouco, a ver com o resto de Cabo Verde. O que não invalida a crescente importância deste turismo de massas, onde é tudo “prés a porter”, num modelo simplesmente importado do vigente nas Canárias, nas Caraíbas, em Cancun ou até de algumas zonas do Algarve.
Atual motor económico da ilha e do país, no entanto, o Sal – ironia das ironias – foi durante muitos séculos, pelo menos até à independência de Cabo Verde, em 1975, a mais pobre das suas ilhas. Autêntico deserto, sem vegetação nem vida animal, sem uma ponta de água – para além daquela que quase nunca cai do céu (e já vão dois anos sem que a chuva a abençoe )- , o Sal foi a última das ilhas a ser povoada, por escravos negros, africanos, transferidos temporariamente pelos seus senhores da vizinha ilha da Boa Vista. A sua única matéria prima era precisamente o sal, o mineral descoberto na boca de um vulcão há muito extinto no local de Pedra Lume. Explorado durante décadas e exportado em grandes quantidades para o Brasil, o sal do Sal esgotou-se enquanto riqueza económica. Hoje, as impressionantes salinas brancas de Pedra Lume não passam de uma das raríssimas atrações turísticas da ilha, e este cronista teve o enorme prazer de se banhar, com os demais companheiros, nas suas águas mortas e extremamente densas, a fazer lembrar o Mar Morto, que morto se mantém desde os tempos bíblicos e que nem mais esta terrível guerra entre Israel e o Hamas consegue ressuscitar…
Enterrado o ciclo do sal mineral, o Sal ilha entrou num novo ciclo, o do turismo, que para além de turistas, tem atraído uma indispensável mão-de-obra, recrutada noutras ilhas e em outros países africanos. O boom económico tem sido acompanhado por um boom social, inevitável e descontrolado, gerador de emprego mas também de novas formas de pobreza, bem patente nos pequenos bairros de lata que pululam como cogumelos nos arredores da capital, Espargos.
Assim, o taxista que nos levou do aeroporto internacional Amílcar Cabral até a uma residencial italiana em Palmeira, é natural de São Nicolau. Desta ilha é também Belinda, a empregada de um das numerosas lojas de chineses, a Loja Hongge Li, ou simplesmente Lee. Álvaro, o condutor da Hiace (ver fotografia) que nos mostrou a ilha, veio de Santiago, tal como Nilton, o guia que nos apresentou aos pequenos tubarões na Baía da Parda. Já o motorista de uma das maiores traineiras da ilha, e que concorreu sem sucesso à faina de Sesimbra, é de São Vicente – Dario de seu nome, “como o rei persa”, assim se apresentou. Há pouco menos de um século, a população da ilha era diminuta, não ultrapassando o milhar de almas. Número que entretanto se multiplicou por trinta: no último censo, de 2021, a população da ilha já ia a caminho dos 34 mil! O mesmo censo revelou que a população de Cabo Verde tem vindo a diminuir, mas no Sal cresce a uma média anual de 2,5 por cento.
Por inacreditável que pareça, a desértica e outrora paupérrima ilha do Sal acaba por ser mais um dos vários milagres que Cabo Verde tem vindo a operar. Milagre não isento de críticas e limitações, mas delas talvez venhamos a falar quando aportarmos a outras ilhas. Para já, está tudo pronto para a largada, ao final da tarde, desta Volta a Cabo Verde em 15 dias. Caro ouvinte da RDP África, embarque connosco a bordo do veleiro “Prosecco”. Só espero que saiba nadar e, já agora, que não enjoe. Até mais logo, ou até amanhã, já em São Nicolau.
José Pedro Castanheira
Cronista-mor do “Prosecco”, ilha do Sal, Cabo Verde