Diário de Bordo 14 – Chegada ao sal, fim da viagem
A última etapa desta Volta a Cabo Verde em 15 Dias cumpriu-se hoje e uniu as ilhas da Boa Vista à do Sal. Foram sete horas de navegação, para cobrir as 35 milhas náuticas (ou 65 quilómetros) de um mar que parece não ter fim.
A última largada iniciou-se sob bons auspícios, prova de que os deuses, que tanta ira e cólera nos haviam votado nos anteriores périplos nos Açores e na Madeira, não só se apaziguaram como decidiram cobrir-nos com a sua benção de infinita bondade. Com efeito, no porto de Sal Rei, na Boa Vista, um mecânico, certamente que enviado dos céus, conseguira o milagre de reparar o motor do catamaran que deixara de trabalhar. Colmatação do pré-filtro do gasóleo, por demasiados sujo, foi o diagnóstico técnico apurado pelo divino perito, pelo que tratou da sua inevitável substituição.
Na última noite a bordo, ao escriba e ao filho Afonso saiu a escala das duas às quatro da manhã. É o período da noite mais penoso, porque um fulano interrompe o primeiro sono, está pelo menos de um olho aberto durante duas horas, e quando a escala termina só dificilmente consegue voltar a adormecer. E se o faz, é por um período demasiado curto e sem direito a ressonar, o que, tudo somado, redunda numa noite sempre mal dormida e rabujenta.
A última escala não teve história, mas em compensação foi iluminada por uma lua quase quase cheia, a pratear um Atlântico muito mais liso e sereno que em noites anteriores.
Nas últimas horas nos seus aposentos privados, o relator acabou por não ter muito mais tempo para descansar, porque entretanto o veleiro chegou ao destino final: o porto de Palmeira, na ilha do Sal, o mesmo local onde, no dia 1 de dezembro de 2024, se iniciou esta inesquecível e histórica aventura pelos mares de Cabo Verde.
Já sem sono mas ainda com ramelas nos olhos raiados de cansaço, pouco passava das sete horas da manhã quando o cronista começou embalar a trouxa. Muita tralha houve para encaixotar, porque ainda está para nascer o dia em que trará menos bagagem à chegada do que aquela que levou à partida. Nem admira, até porque o mesmo acontecia com os descobridores quinhentistas. Na verdade, os António di Noli, os Diogo Gomes, os Luís Cadamosto, ou quem quer que tenha aportado em 1460 pela primeira vez a estas ilhas desconhecidas, que se situavam em frente daquele Cabo Verde já perfeitamente referenciado nas cartas e mapas náuticos nas costas da Guiné, seguramente que terão zarpado de Lisboa ou de Lagos com mercadorias e haveres muito diferentes dos trazidas à chegada. Diferentes no volume, peso, quantidade, qualidade e variedade, posto que um dos principais propósito daquelas caravelas, naus, galeões e quejandos era comerciar e trocar, vender e comprar, e no final trazer no bojo mercadorias de valor de que pudesse resultar lucro ou mais valia. Tudo isto para explicar que este cronista, na hora do regresso, necessitou de muito tempo, paciência e habilidade para inventar mais espaço nas malas, baús, sacos e mochilas, atulhadas de recuerdos, bugigangas e coisas novas.
Fundeados de novo em Palmeira, à vista do veleiro “Prosecco”, provavelmente ainda à espera de uma indispensável sonda para se poder fazer ao mar, o “Cachaça” teve que esperar, paciente e demoradamente, que os agentes da empresa charter espanhola Alboran se dignassem ir a bordo para proceder ao chamado check-out da viagem. Tempo aproveitado para uma sessão de selfies de toda a tripulação ainda a bordo (VER FOTOGRAFIA) e para selecionar, do muito que se havia comprado para a viagem, aquilo que não se justificava que fosse levado para terra, por inútil ou falta de espaço.
Foi o caso, designadamente, do alguidar vermelho made in China que o cronista comprara na escala em Santiago e que lhe serviu para retirar cheiros, suores, nódoas e outras sujidades de alguma roupa, e que outros marinheiros usaram, com a devida e prévia autorização do proprietário, para melhor lavar os pés, deles escovando areias pretas e saneando chulés. A bordo ficaram ainda outras preciosidades, como alguns quilos de amendoins, palha de aço, sacos de plástico, detergentes vários, rolos de papel de cozinha, molas para a roupa e bastante papel higiénico.
Aqui chegados, há que abrir um parêntesis para referir que o historial das relações que se foram estabelecendo entre a tripulação e os responsáveis cabo-verdianos da operadora Alboran dariam só por si para um volumoso apêndice a este Diário de Bordo. Mas porque o tempo escasseia, e para poupar o leitor a episódios e enredos menos agradáveis e inteiramente alheios aos propósitos desta expedição, nada mais se dirá senão que foram relações pouco edificantes e nada amistosas – e com esta se dá por encerrado o dito parêntesis.
Enfim, concluído o check-out, devolvido o “Cachaça” aos seus donos e após um último aceno (VER FOTOGRAFIA), procedeu-se à transferência para terra de homens, bagagens, mercadorias e histórias, muitas histórias para contar.
Em respeito pelas mais sagradas tradições náuticas, o último a abandonar o navio foi o skipper, Francisco Blasques. No cais foi o caos, com muita gente, entre o curiosa, o prestável ou o sequiosa, à volta dos portugueses acabados de aportar e sobretudo das suas mercadorias. Ali mesmo se decidiu oferecer (quase) tudo quanto de alimentação sobrara: leite, sumos, enlatados, cereais, massas, arroz, azeite, sal, sabe-se lá que mais. Num ápice, tudo desapareceu, esperando-se que tenha ficado em boas mãos e necessitadas bocas.
A tripulação teve que pernoitar na ilha do Sal, aguardando pelo voo de regresso para Lisboa, aprazado para o dia seguinte. No Sal, e para não inovar, instalou-se na mesma residencial da partida. O “chef” Nuno, desolado por não ter podido revelar os seus múltiplos dotes e créditos de cozinheiro durante a viagem, a todos convidou para o derradeiro almoço, por si confeccionado. Quando começou a estender as iguarias na mesa da cozinha reparou que quase tudo do que necessitava desaparecera no cais, quando a tripulação decidira libertar-se dos mantimentos sobrantes. Cauteloso, o “chef” só não perdera de vista as postas de bacalhau e os ovos que havia comprado no Mindelo e que guardara ciosamente durante a viagem no frigorífico de bordo. Confinado ao bacalhau, tratou de comprar num minimercado – chinês, está-se a ver -, o acompanhamento: batata, grão, cebola, alho. Iniciado o cozimento do bacalhau, da panela logo começou a sair um fedor próximo do fedorento, indiciador de más notícias. Retirada a tampa, não havia dúvidas, o bacalhau estava intragável, na fronteira do podre. A ementa do almoço, com que decidira brindar os companheiros da tripulação e os acompanhantes, e celebrar os seus venturosos feitos, teve que ser refeita. O bacalhau cedeu o lugar a uma embalagem de atum em lata, made in Cabo Verde, trazida pelo próprio Nuno do Museu da Pesca de São Nicolau, dose reforçada por uma ida de emergência do escriba e da Lena, a esposa do “chef”, a um minimercado (chinês…) na esquina.
O repasto terminou em êxtase. Não propriamente culinário, e não se veja nisto qualquer remoque do escriba ao seu irmão e “chef” Nuno, mas de carácter mais memorialístico, quase se diria afetivo. O João Blasques, o skipper adjunto, que liderara as anteriores aventuras nos Açores e na Madeira, retirou de um misterioso saco de plástico azul, que trouxera de Lisboa, uma prenda para todos e cada um: uma t-shirt antecipadamente comemorativa do êxito da viagem. Confecionadas em Loures, traziam, estampadas, o mapa das ilhas de Cabo Verde, com a particularidade de ter sido expurgada a única a que não se aportou, Santa Luzia, por não ser habitada. E com os dizeres “Alboran Prosecco. Cabo Verde 2024”. É conhecida a imaginação e o espírito inventivo do mais velho de todos nós, mas convenhamos que lhe seria de todo impossível prever que o veleiro “Prosseco“, alugado há muitos meses à charter Alboran, seria substituído em cima da hora, antes da primeira etapa se iniciar, pelo catamaran “Cachaça”. Eram onze camisetas, dez azuis e uma preta, de dimensões várias: M, L e uma XL. A preta, que era a XL, foi por unanimidade e conveniência entregue ao skipper. Seguiu-se a indispensável foto de família dos sete tripulantes e dos três acompanhantes, envergando as t-shirts, que todos guardarão como lembrança muito especial deste passeio pelas ilhas de Cabo Verde (VER FOTOGRAFIA).
O leitor mais expedito em aritmética já terá reparado em como as contas não batem certo: sete mais três são dez, então porquê onze camisas? A esta mesma duvida respondeu antecipadamente o próprio João Blasques: a décima primeira é para ser lançada para a assistência, quando for lançado o livro com o Diário de Bordo. Como é uso a noiva fazer no final do casamento, quando joga o bouquet de flores para o meio de amigas solteiras e casadoiras.
Comovido com a oferta, e antes mesmo de se despedir de Cabo Verde (VER FOTOGRAFIA), o escriba-mor logo decidiu o que fazer com a sua T-shirt. Vai guardá-la muito bem guardadinha, não numa gaveta escondida ou numa prateleira escura, mas rodeada de fotografias da viagem, numa moldura que irá pendurar numa parede do escritório. Será sob a sua inspiração que irá ler aos netos as aventuras da Moby Dick, do Robinson Crusoe ou do Fernão Capelo Gaivota, as crónicas de Fernão Mendes Pinto e de António Pigafetta, a lírica épica de Camões ou os livros de Vitorino Nemésio, Raul Brandão ou Baltasar Lopes. E se acaso os netos o pedirem, talvez lhes leia este modesto diário de bordo do avô, de uma inesquecível Volta a Cabo Verde em 15 Dias.
José Pedro Castanheira
(14 de dezembro, em terra bem firme, na casa de Lisboa, já a pensar na próxima Volta a ??? em 15 Dias e no respetivo Diário de bordo)
Diário de Bordo 13
Organizado de forma rotativa, a escala noturna que coube ao cronista foi das quatro às seis da manhã. Duas horas em que nada aconteceu. Felizmente. Aliás, até agora a navegação, que tem sido quase sempre noturna, só foi agitada em matéria de solavancos. Quanto ao mais, nada de novo no reino de Cabo Verde. Basta ver que já se passaram quase duas semanas e o número de embarcações avistadas não chegou aos dedos de uma só mão. Em termos de intensidade de tráfego, estas águas oceânicas nada têm a ver com as dos Açores ou da Madeira, que o cronista conheceu de lés-a-lés e sobre as quais até escreveu épicos diários de bordo, que todos os mareantes deveriam levar a tiracolo e consultar amiúde, porque pejados de úteis informações, eruditos conhecimentos e mui sábios aconselhamentos.
A navegar apenas com o motor, direitinho contra o sentido da vaga, a velocidade foi lenta: inferior a três nós. Mas porque não se acelerou mais, tipo prego a fundo? – perguntará o leitor que se julga mais entendido em matéria de motores, rotações, velocidades e adrenalinas. A resposta é deveras simples: é que nem o oceano é uma pista de fórmula 1, sequer uma autoestrada de quatro faixas, nem um veleiro é um bólide que reaja tal qual uma embarcação de corrida ou um iate semelhante ao do conhecido cidadão de naturalidade russa, ascendência sefardita e nacionalidade portuguesa de nome Roman Abramovich. Certamente que se lhe puxarmos a alavanca da velocidade mais para a frente, aumentando o número de rotações do motor, o catamaran passaria a deslizar mais depressa. Só que a qualidade da navegação tornar-se-ia ainda pior, e sabem os deuses, tal como o estômago dos marinheiros mais sensíveis, como ela tem sido menos saudável desde que, percorridas as ilhas do Barlavento com vento favorável soprando de nordeste, uma vez chegados à Brava se iniciou o percurso pelas do sotavento, em direção à ambicionada linha da meta, traçada na ilha do Sal, já sem a suave brisa dos Alísios e sempre sempre contra a vaga. O chocalhar no interior do barco, porque é disso que se trata, seria simplesmente insuportável, estilo montanha russa.
Terminada a escala de vigilância noturna, o cronista recolheu aos seus aposentos para tentar dormir mais qualquer coisinha, mas sabe Deus como é difícil voltar a pegar no sono às seis da manhã, quando já todos os galos cantaram.
Uma hora depois, e estando ainda a contar carneiros, tendo ouvido um estranho sussurro vindo do cockpit, subiu até lá. O estado-maior do veleiro estava reunido e com cara de caso. Pudera: um dos dois motores do catamaran, o que se situa no casco de bombordo, estava a falhar. Temeu-se que fosse falta de óleo, mas verificado o seu nível, não era essa a causa. Desligou-se o motor e tornou-se a ligar, uma espécie de reset como é de uso fazer aos telemóveis, tablets e computadores quando se ignora do que padecem. Por momentos pareceu que o motor retomara a normalidade, mas cedo voltou a fraquejar, como que a engasgar-se. Até que aconteceu o que mais se temia: deixou mesmo de funcionar. Nem com mais resets, nem à paulada, nem com insultos. O cronista, que, enquanto repórter, escreveu muitas notas necrológicas, apressou-se a anotar a data do óbito do motor no seu caderno de bolso de capa preta: 07.50 horas de 12 de dezembro de 2024. Não se podendo navegar à vela de forma útil por razões já aqui aduzidas, passou a andar-se com um só motor. Necessariamente mais devagar. Chegados à Boavista, acredita-se, haverá certamente um mecânico capaz de o reparar – façamos figas para que tal aconteça e que o motor de estibordo, informado do sucedido com o irmão gémeo de bombordo, não faça nenhuma birra ou não declare nenhuma greve de solidariedade.
O porto de Sal Rei, que serve a ilha da Boa Vista, é um senhor porto de recreio. Em termos de embarcações fundeadas, só ficará a perder para a marina do Mindelo. Desta vez não foi fácil encontrar a já tradicional Hiace branca para se poder dar uma volta à ilha, que parece estar a seguir as pisadas da vizinha ilha do Sal em termos do modelo de crescimento económico aplicado: um turismo de massas, nas mãos de operadores internacionais como a espanhola Tui, com aviões, autocarros, jipes, barcos, grandes hotéis, restaurantes e SPA’s, centenas de empregados, e muito sol e muita praia, tudo em circuito fechado. Ou como se diz na gíria da indústria do lazer, “all inclusive”, com o cliente, originário sobretudo da Europa, de fita colorida enrolada num pulso, a nem precisar de andar de carteira ou de cartão bancário.
A Boa Vista é célebre pelas suas extensas praias, de areia muito fina e branca, trazida do deserto do Sarah pelos ventos fortes e quentes do continente africano. Areias que, num estranho fenómeno muito recente, também passaram a concentrar-se numa zona do interior da ilha, o Deserto de Viana. Um deserto insólito e que impressiona: pela sua inegável beleza, pelo vivo contraste entre o branco do areal e o verde das muitas acácias que nele sobrevivem, estendendo as raízes finas mas muitíssimo resistentes ao longo de muitas dezenas de metros, à cata de uma pinta que seja de humidade (VER FOTOGRAFIA).

A Boa Vista é igualmente célebre por ser um dos maiores santuários do mundo da tartaruga “caretta caretta”, que a procuram para a desova anual um pouco por todas as praias, com especial incidência nas do leste e em particular na de Ervatão, que passou a ser uma extensa reserva natural para a sua proteção.
Na vila de Rabil, o casal João Morais e Sigénia Fernandes são dos poucos artesãos que mantém a olaria local. Ele dedica-se a fazer vasos e potes, alguns de grande dimensão, com a particularidade de não trabalhar com a habitual roda de oleiro. Ela é quem faz, a partir de moldes em gesso, tartarugas de várias dimensões (VER FOTOGRAFIA), que depois de cozidas em forno de gás, durante nove horas e a quase mil graus centígrados, pinta de cores garridas, um produto de êxito garantido.

A única estrada que atravessa a ilha (a terceira maior do arquipélago) é de paralelepípedos. É obrigatória: atravessa uma vasta planície totalmente desértica, mas sem areia, esquálida, onde nem a acácia consegue vingar. Muito pontualmente, lá aparecem pequeníssimos oásis, assinalados por algumas palmeiras meio curvadas (VER FOTOGRAFIA), sem vivalma, apenas com um ou outro burro, o animal que mais se vê na ilha.

Nos leitos de algumas ribeiras de maior caudal quando chove (o que acontece raramente, visto que a Boa Vista é uma das ilhas mais secas do arquipélago), foram erguidas pequenas represas de pedra, para reter temporariamente as águas. Este açude é uma fronteira entre dois cenários opostos: a jusante, é terra seca, castanha, quase sem vida; a montante, é vegetação vigorosa, verde, a transpirar vitalidade.
A estrada é quase sempre reta. Nas bermas, refletindo a luz do sol que começava a descer para a linha do horizonte, semeadas entre as pedras, viam-se centenas (milhares?) de garrafas de cerveja, que os transeuntes se entretém a lançar pela janela fora, quase como se fosse um ritual absurdo. Aliás o lixo urbano é um sério problema em Cabo Verde, igualmente visível na quantidade de garrafas e outros materiais de plástico que se acumulam na base das acácias. O que não deixa de contrastar com a extrema limpeza das ruas e praças das povoações, mesmo as de dimensão média, e sobretudo com o asseio geral das suas casas.
O melhor troço deste estrada, que bem poderia designar-se, como acentuou o “chef” Nuno, como “a road 65 da Boa Vista”, termina no Fundo das Figueiras. Povoado colorido com muitas buganvílias, foi o eleito para o almoço, num restaurante plural em termos desportivos, na medida em que exibia dísticos do Porto, Benfica e Sporting – e esta é outras das referências constantes em todas as ilhas, seguindo-se com paixão clubística os sucessos e reveses das cores preferidas do futebol português. Aproveitando a sombra, um grupo de jovens estava verdadeiramente absorto nas delícias dos telemóveis (VER FOTOGRAFIA).
Em Fundo das Figueiras nasceu, em 1924, Aristides Pereira, que viria a ser o primeiro Presidente da República de Cabo Verde, cargo que exerceu com indiscutível distinção durante 16 anos. Ao aeroporto internacional da Boa Vista foi dado muito justamente o seu nome. Quanto à casa em que Aristides Pereira nasceu, foi simplesmente arrasada. No local colocaram uma lápide evocativa, que está muito aquém de honrar a sua memória (VER FOTOGRAFIA). Outros dos filhos famosos da Boa Vista é o escritor Germano Almeida, Prémio Camões de 2018, que há muito trocou a ilha berço pela cidade de Mindelo.
Para o banho de despedida da Boa Vista escolheu-se a praia de Santa Mónica, que Claudino, o motorista, classificou sem hesitar como uma das sete maravilhas de Cabo Verde. O acesso não é fácil, porque a estrada desemboca num caminho que é mais de pedra batida do que de terra batida, ao longo do leito de uma ribeira morta que, em dias de chuva, ganha uma nova vida. A ribeira que também é caminho desagua numa imensa praia, de 18 quilómetros de extensão. É a tal Santa Mónica, onde está a nascer um mega projeto turístico.
O sol já se escondera por detrás do oceano quando a tripulação regressou ao “Cachaça”. Seguiu-se um rápido e frugal jantar, após o que o veleiro levantou ferro e se despediu da Boa Vista. Direção: Sal, para a última etapa desta Volta a Cabo Verde em 15 Dias.Jose Pedro Castanheira
Diário de Bordo 12 – Ilha do Maio
Da ilha de Santiago à de Maio, oitava etapa desta Volta a Cabo Verde, são 40 milhas náuticas, ou seja, 74 quilómetros. A viagem foi feita sempre de noite: sete horas de navegação. Navegação desagradável, há que o reconhecer, porque este escriba não é dos que acham que o mar é uma espécie de Paraíso ou Olimpo, onde é tudo harmonia e felicidade, paz e amor. É certo que da marinhagem do “Cachaça” jamais se ouviram queixumes contra a maior ou menor intensidade do vento, ou contra o estado do mar, das suas correntes ou ondulação. Aliás, nessas matérias, tudo tem corrido dentro do previsto. O problema é mesmo o navegar de frente, peito aberta, direitinho contra a vaga. Vá lá que, nesta etapa entre as duas ilhas, que, pela sua proximidade, se vêem uma à outra, ainda se beneficiou de alguma proteção conferida por ambas, que se traduz por uma diminuição quer da força do vento quer do tamanho da vaga. Já na próxima etapa, a caminho da Boa Vista, não se poderá contar com esse fator. Adivinha-se o pior – mas o melhor é não antecipar, um dia de cada vez, como soi dizer-se.
Das nove ilhas crioulas habitadas, Maio é a penúltima em termos de superfície e população, só ultrapassada pela Brava. Mas ao invés desta, é muito plana. Há quem diga que a ilha se vê numa hora de tempo. Exagero certamente. Mas não deixa de ser verdade que, tirando as suas praias, de extensas areias brancas e limpas, servidas por um mar de cor turquesa, não tem muito mais para oferecer.
O ponto mais alto, Monte Penoso, com 437 metros, não é acessível de automóvel. As extensas salinas, logo à saída do porto, já não têm a importância económica de outrora, num curtíssimo período em que o sal, negócio nas mãos de ingleses, foi a sua riqueza.
A estrada percorre aquela que é considerada a maior floresta do país de acácia americana. Esta acácia foi a escolha feita pelas autoridades do país, após a independência, em 1975, para tentar pintalgar um pouco de verde um arquipélago em que a cor largamente dominante eram os vários tons do castanho de uma terra seca, pobre e pedregosa, o que, em conjugação com prolongados períodos de seca, motivara as frequentes e quase cíclicas fomes de dimensões bíblicas. Meio século depois da independência, a acácia, planta sumamente invasiva, está por todo o lado. Às qualidades que não é possível deixar de reconhecer e aplaudir neste esforço brutal de florestação, contrapõem-se entretanto alguns sérios inconvenientes. Como o de ser semelhante ao eucalipto: seca toda a vegetação à sua volta e vai roubar a água que tanta falta faz para outras culturas e necessidades das populações. Acresce que não tem utilidade económica: as cabras, de quem se diz que são capazes de se alimentar do ar que respiram, não comem nem as suas folhas nem as bagas; e é cada vez menor a população que, à falta de melhor combustível, ainda utiliza a acácia como lenha para queima. O debate está instalado, e sabe-se como a sociedade cabo-verdiana se pela por uma boa discussão.
Nos povoados, pequenos, vivem sobretudo pescadores e agricultores. São todos muito semelhantes: casas de um só piso, de arquitectura tradicional, cores garridas mas que a inclemência do sol vai descolorindo. Na Calheta, para tomar um café, éramos os únicos clientes do restaurante Belo Horizonte, junto a uma magnífica praia mas sem vivalma (ver fotografia). Cristina, a proprietária, acedeu gentilmente em tirar uma fotografia à tripulação. Ao longo do caminho, o motorista da Hiace foi fazendo algumas entregas de mercadorias e pediu autorização para dar boleia a quem pretendia deslocar-se até ao próximo povoado, Morrinho. Em Pedro Vaz fez-se um ligeiro desvio para Praia Gonçalo, não tanto por causa da praia mas do Gonçalo com que a baptizaram e que é também o nome de um dos acompanhantes do grupo, por sinal um dos filhos do “chef” Nuno, que fez questão de ser fotografado junto a uma pintura mural inspirada no topónimo.
Claudino, o motorista, vive em Alcatraz e serviu-nos de guia improvisado. Pertence a uma família de músicos que animam uma tocatina de cinco instrumentos. Ele próprio toca cavaquinho, que aprendeu com o pai. É uma das três bandas da ilha, com atuações regulares em festas, e até já foram tocar a Santiago, da única vez que saiu da ilha. A irmã, Delfina, por sua vez, é a líder de um grupo de batucadeiras, chamado Raiz Monte Penoso. As batucadeiras são um agrupamento típico de Santiago: vozes exclusivamente femininas, de idades muito variadas, que se acompanham a si próprias batendo ritmadas com ambas as mãos num invólucro que seguram no regaço, podendo ser acompanhadas por teclado ou concertina. Além de ser a vocalista, Delfina é a compositora. Na aparelhagem sonora da Hiace, Claudino selecionou uma das músicas do grupo, “Povo cabo-verdiano” (https://youtube.com/watch?v=z83hSLSBo8Y&si=ie4Or7KbWbVKdvGV). Os marinheiros escutaram e aprovaram. A música é deveras simples e ritmada, entra logo no ouvido, e não admira que toda a tripulação a cantarolasse e assobiasse, enquanto batia palmas como as batucadeiras. Um momento mágico na visita a Maio.
Faltava apenas percorrer Vila Maio, capital da ilha e sede do concelho. Claudino foi quem nos informou: desde que há eleições autárquicas em Cabo Verde, o Maio foi sempre uma coutada do MdP, mas agora passou para o PAICV. Mais uma das derrotas do partido da ventoinha, que está no poder. “O povo está cansado”, explicou o nosso comentador, que ao ser indagado sobre o partido em que votara, fez um sorriso largo mas preferiu nada dizer.
Na vila há uma grande comunidade de italianos, alguns reformados, outros que se dedicam ao turismo, por onde tudo indica passará o futuro da ilha, pelo menos a prazo. Os italianos são acusados de descaracterizar a vila, já que compram as casas para as desfigurarem por completo. A salvo estará pelo menos a igreja de Nossa Senhora da Luz, indiscutivelmente a mais bela das muitas igrejas que fomos vendo na viagem. Datada de 1872, pintada de branco e amarelo, confunde-se facilmente com muitas igrejas do Alentejo ou do Algarve (ver fotografia).
Vir ao Maio e não mergulhar nas suas águas seria um pecado. Para não o cometer, escolheu-se a praia da vila, frente ao restaurante Tropical. Enquanto o cozinheiro confecciava um bonito acabado de pescar, a tripulação foi a banhos. Que bem que soube. Italiano, Luigi tinha um negócio semelhante nas Canárias e tem vindo a fugir dos governos que acusa de lhe levarem tudo em impostos. Acabou de acampar no Maio e em poucos dias foi capaz de dar vida nova àquele espaço, encerrado há muito tempo. Desejámos-lhe sorte, até porque fomos bem servidos.
No regresso ao “Cachaça”, e antes de se atirar ao diário de bordo, o escriba fez uma saponaria no alguidar vermelho que comprara no Tarrafal, onde meteu algumas peças de roupa de que ele e o filho barba azul mais careciam: cuecas, t-shirts e peúgas. A cor da água que dela sobrou não era propriamente muito asseada, mas são ossos do ofício de quem anda no mar há mais de dez dias. Para secar a roupa lavada estendeu-a com molas no balaústre da ré do catamaran, mas cedo se apercebeu que não estava a salvo dos borrifos de alguns carneirinhos nem dos salpicos resultantes da refrega entre o barco em movimento e as ondas. Resultado: recolheu a roupa e voltou a pendurá-la com toda a delicadeza no seu camarote, que se transformou num autêntico estendal. Pelo menos dormirá esta noite, literalmente, entre roupa lavada e bem cheirosa.José Pedro Castanheira
(11 de dezembro, camarote dianteiro do casco de estibordo do “Cachaça”, entre as ilhas do Maio e da Boa Vista)



Diário de Bordo 11 – Segundo dia na Ilha de Santiago
Depois de Santo Antão e do Fogo, foi a vez de Santiago merecer a estada de dois dias, no âmbito desta Volta a Cabo Verde num veleiro. Ontem foi a vez do Tarrafal e arredores; para hoje, Carlos Santos, o nosso diligente guia, planeou uma incursão à Cidade da Praia e à Cidade Velha, mas a um ritmo de mata cavalos, porque Santiago é a maior ilha do país e, altiva, tem muito para mostrar e para se ver.
O cronista passou uma larga fatia da noite divido entre o iPad, a tentar pôr em dia o Diário de bordo, e a dormitar no saco-cama.
O toque de alvorada foi às seis da manhã, para que todos pudessem embarcar às sete na Toyota Hiace, rumo à Cidade da Praia. O todos eram seis tripulantes (o skipper permaneceu a bordo) e os três acompanhantes que, não podendo velejar por não suportarem o temível “mal de mer”, a expressão que tudo exprime com que os franceses designam o enjoo, insistiram em acompanhar esta Volta a Cabo Verde mas de avião. O dia acordou na cidade do Tarrafal muito húmido. A ponto de, na subida ao parque natural da Serra da Malagueta, quase nada se ver, em particular a numerosa colónia de macacos que ali reside. Já não se tratava da famosa bruma seca, aquela névoa formada pelas poeiras e areias vindas do deserto do Sarah e que os ventos quentes conseguem empurrar ao longo de meio milhar de quilómetros, cobrindo as ilhas de uma espécie de manto espesso que em muito limita a visibilidade. A dita bruma, que se o escriba não a visse, julgaria que se tratava de uma ficção mais próxima dos livros de aventuras com piratas e corsários, abalroamentos e naufrágios, fez a sua aparição este ano mais cedo que o costume e chega a ser tão densa que obriga a interditar o espaço aéreo e a limitar a própria navegação marítima. Na Serra da Malagueta, porém, o céu nublado já não era da bruma seca dos últimos dias, era a bruma molhada de um nevoeiro frio que aumentava à medida que se subia e nada deixava vislumbrar.
A primeira paragem foi na vila da Assomada, que passa por ser o coração africano da ilha e do país, para o mata-bicho matinal, numa casa chamada Pão Quente. Trata-se de um franchising português com bastante sucesso em Santiago e onde se beberam as portuguesíssimas bicas, meias de leite, galões ou abatanados, a acompanhar tostas mistas, sandes mistas, sandes de queijo com manteiga, sandes de queijo sem manteiga, sandes só de fiambre, sumo de laranja, meio sumo de laranja e pastéis de nata com canela, que isto de grupos de portugueses em antigas colónias portuguesas dá sempre nisto.
A estrada que liga o Tarrafal à Praia é asfaltada, está bem sinalizada, mas o trânsito é intenso e cometem-se demasiadas loucuras (que ainda há dias custaram de noite a vida a cinco jovens numa Hiace). Loucuras que escapam às numerosas lombas semeadas ao longo do percurso, particularmente no interior das muitas povoações que a estrada atravessa, e às frequentes operações stop, como a que deteve a nossa carrinha, com o agente Celestino Cunha, da Polícia de Ordem Pública, armado com um revólver e ar severo, a verificar os documentos do motorista e a dar a luz verde com a convencional continência.
A Cidade da Praia não tem nada a ver com o Cabo Verde que até agora se tinha visto. Nem é uma cidade bonita, muito pelo contrário. Vista de longe, faz lembrar as gigantescas favelas brasileiras, que vão subindo sucessivamente nos morros em que se implantam, de forma desordenada, anárquica, cinzenta, parecendo que muitas das construções de tijolo e cimento nunca estarão terminadas. É já uma senhora urbe, com mais de uma centena de milhar de habitantes, ruidosa, movimentada, dinâmica, suja, igual a tantas outras, com feições muito africanas.
A parte histórica está impantada sobretudo no chamado plateau, que nada tem a ver com a restante. urbe. É a velha cidade colonial, mas bem preservada, com marcas bem portuguesas, no património, na arquitetura, na toponímia. O mercado municipal dá ideia da riqueza e variedade agrícola da ilha (ver fotografia). O antigo Liceu Adriano Moreira continua a ser um dos principais estabelecimentos de ensino secundário (12 anos de escolaridade obrigatória e gratuita) e parece irmão gémeo de muitos liceus do Portugal salazarista.
Fora do plateau, o mega projeto de um consórcio chinês de uma espécie de Las Vegas em pleno Atlântico, e que entretanto faliu, é uma gigantesca e chocante nódoa, cuja limpeza recomendaria uma simples implosão do já edificado. A marca, a estética e o financiamento chinês estão, aliás, por todo o lado: na sede do Governo, na Biblioteca Nacional, na Assembleia Nacional, no estádio nacional, na enorme estátua de Amílcar Cabral, onde se conseguem distinguir traços orientais e na qual o pai fundador de Cabo Verde, como da Guiné-Bissau, surge com vestes nada apropriadas à realidade a tradição africanas.
Na saída da Praia, após uma zona industrial em franco crescimento, vem o campus universitário, com a Universidade Piaget e, logo a seguir, a Universidade de Cabo Verde, igualmente construída pela República Popular da China. Mais à frente, é a surpresa e o encanto da Cidade Velha. Trata-se da antiga Ribeira Grande, local onde se iniciou o povoamento de Cabo Verde.
Ainda que com atraso, de que o escriba muito se penitencia, haverá que explicar que, à semelhança da Madeira e dos Açores, e contrariamente às Canárias, quando os navegadores António di Nola e Diogo Gomes, ao serviço da coroa portuguesa, aportaram em 1460 a umas ilhas que se localizavam em frente do chamado Cabo Verde da costa africana, estas não eram habitadas. O povoamento começou no lugar da Ribeira Grande, que viria a ser a primeira capital da colónia e um grande entreposto de escravos negros, aprisionados nas costas africanas, negociados com os armadores negreiros na Robeira Grande e depois transportados para as Caraíbas e Brasil.
A tripulação deteve-se longa e justificadamente na Cidade Velha. Para almoçar, optou-se e bem pelo restaurante Kaza Antu, encostadinho mesmo ao mar e celebrou-se o aniversário do marinheiro Afonso barba-sul, com a dúvida sobre se seriam 37 ou 38 outonos, e direito a um bolo de velas comprado por um casal amigo do escriba, os jornalistas José Vicente Lopes e Marilene Pereira, ele um sampadjudu (ou seja, natural de São Vicente), ela brasileira mas quase quase crioula. Pena foi que o aniversariante, que é vegan, só tenha provado uma migalha do bolo, que acabou por ser comido por um casal de turistas estrangeiros que se associou, não se percebeu em que língua, ao “Parabéns a Você”.
Património mundial da Unesco, a Cidade Velha, fundada em 1462, é uma pérola. Não havendo tempo para a descrição que mereceria, fica o registo da igreja manuelina de Nossa Senhora do Rosário, muito bem recuperada; o extraordinário Pelourinho, o local por excelência do comércio de escravos (ver fotografia); as ruínas da Sé Catedral, de dimensões imponentes, construída com pedra aparelhada em Portugal e transportadas em naus; a Rua da Banana, com numerosas casas dos tempos áureos da cidade; e, lá em cima, a Fortaleza Real de São Filipe, com um desenho e uma concepção análogas às da raia portuguesa. O projecto de reabilitação tem a assinatura de Siza Vieira e é uma amostra do poder e da capacidade do império português no seu auge histórico.
O regresso ao Tarrafal foi uma verdadeira corrida contra-relógio, com curtas paragens de caráter operacional: para comprar tabaco, cuja provisão se esgotara, levantar escudos cabo-verdianos no multibanco, reforçar a conta do telemóvel, ou adquirir um remendo para uma das defensas do barco. Valeu, neste item, mais uma loja dos chineses, onde se compraram dois remendos, uma lixa e uma cola por 4,5 euros. Marca chinesa, pois claro, Kequimé. Se o remendo der uma segunda vida àquela bóia bojuda, branca e azul, será um verdadeiro milagre, mas haja esperança, que desta vez os deuses, menos até agora, têm abençoado esta Viagem a Cabo Verde em 15 Dias.
José Pedro Castanheira
(10 de dezembro, a bordo do catamaran “Cachaça”, entre as ilhas de Santiago e Maio)
Diário de Bordo 10 – Ilha de Santiago
E de repente, tudo mudou! Desde o dia inicial, no já longínquo dia 1, quando esta Volta a Cabo Verde arrancou do Sal, sempre navegámos com o vento a favor. Soprando do quadrante nordeste, os alísios são os ventos dominantes nesta época do ano e nesta zona do Atlântico, factor que, conjuntamente com a temperatura amena que ora se faz sentir em Cabo Verde, pesou decisivamente na escolha deste período para mais esta aventura. Navegando frequentemente com a vela grande e a genoa abertas, prescindindo mesmo do auxílio do motor, assim percorremos todas as ilhas do barlavento. E mesmo quando, a partir de Santo Antão, virámos para Sul, à conquista das ilhas do sotavento, ainda foi possível tirar partido do vento, que em certos dias chegou a soprar a entre os 20 e o 25 nós. Agora, porém, ao inflectir para Oeste, rumo à ilha de Santiago, passámos a ter o vento pela frente, o que mudou por completo o cenário da navegação. Foi o que sentimos logo à saída do Porto da Furna, na Brava.



Diário de Bordo 9 – Ilha Brava
A viagem entre o Fogo e a Brava foi um salto. Dez milhas náuticas, 18 quilómetros, cerca de uma hora e meia. As duas ilhas são vizinhas, vivem pertinho uma da outra, quase poderiam namorar, mas passam muito tempo sem se verem: a névoa que cobria a Brava é uma das suas características mais marcantes, que explica o mistério e as lendas que a rodeiam.
A viagem, pela madrugada, não teve história (VER FOTOGRAFIA).
Pelo contrário, a atracagem foi um happening. Era domingo, oito horas da manhã, quando se chegou ao pequeníssimo porto da Furna. De todos os contactos que havíamos levado, nem vivalma. Tudo fechado no porto.
Foram quase três horas, de paciente exercício de fundear o barco, com a ajuda de um barco de pescadores e até de mergulhadores. Chegou a pairar a hipótese de se desistir desta sexta etapa da volta a Cabo Verde e rumar directamente para a sétima, Santiago.
Valeu, porém, o exemplo de persistência com que havíamos deparado na véspera no Chã das Caldeiras, a cratera do vulcão fundador da ilha do Fogo. Ao fim de inúmeras tentativas, grandes doses de paciência, lá se conseguiu encontrar um espaço a salvo da profusão e do incrível emaranhado de cabos, e largar o ferro de forma minimamente segura.
Em terra, contratou-se uma Hiace e como quase ninguém tinha matado o bicho matinal, fomos imediatamente almoçar. Com a ajuda do motorista lá se encontrou um restaurante aberto. Não na vila, como na Brava todos designam a capital da ilha, Nova Sintra, mas numa povoação chamada Fajã de Água, que foi mais uma das muitas surpresas deste périplo náutico por estas ilhas.
Garoupa grelhada no restaurante Bar Dinos, gerido pelo casal Joaquim e Benvinda, com o auxílio da jovem e bonita Mileida, a quinta filha do pai, todas de mulheres diferentes, como o próprio fez questão de informar com total naturalidade. No exterior, numa enorme panela, em cima de dois tijolos e de lenha a arder, preparava-se o jantar: uma catchupa de cabeça de porco, de que se levou uma boa dose para o veleiro.
A Fajã de Água é magnífica, belíssima, com uma praia de águas límpidas e areia preta (VER FOTOGRAFIA das duas crianças)
onde há tartarugas que desovam e cuja baía é visitadas por golfinhos, que anunciam a chegada das chuvas. A Fajã, que é o que sobra de uma muito antiga cratera vulcânica, respira tranquilidade, silêncio, calma, vagar, paz. Nem sempre terá sido assim, porque em tempos que já lá vão o aeroporto da Brava ficava nem a um quilometro da Fajã. Uma pista demasiado curta, ventos irregulares e sobretudo um trágico acidente no aeroporto muito similar de Santo Antão, levou a que nunca mais houvesse voos para qualquer das ilhas. Até hoje. E esta é mais uma das razões que explicam não apenas o isolamento mas também o abandono da Brava.
Num ranking sobre as nove ilhas habitadas de Cabo Verde, que o cronista ignora se existe, mas que não faria mal se houvesse, a Brava ocuparia o primeiro lugar em numerosos itens. Tentemos fazê-lo: a mais pequena, a menos populosa, a mais verde e florida, a menos quente e mais húmida. Em critérios mais subjectivos como a simpatia, a segurança, a beleza, ocuparia decerto lugares dianteiros. Também na qualidade do grogue, em volume da emigração e na pobreza das gentes.
Curiosamente, nem é tanto o atraso da ilha em variados índices que mais impressionou o escriba. Foi o abandono. Foi a paragem no tempo. Um passeio a pé pelas ruas e largos de Nova Sintra, transporta-nos para muitas décadas atrás. A capital não é seguramente muito diferente da Nova Sintra anterior à independência, com uma arquitetura (nas cores, no estilo, nos materiais, no desenho, nos sobrados, no ambiente) decalcada de muitas aldeias e vilas do interior de Portugal.
A Escola de Nossa Senhora do Monte continua a funcionar nas mesmíssimas instalações da que ali deixou o salazarismo há uns três quartos de século, sem que nada da fachada tivesse sido alterada. Continua a ter o nome de “Escolas” e, cereja no topo do bolo, lá continua a estar a esfera armilar (VER FOTOGRAFIA).
Não muito diferente está o edifício da escola, em Nova Sintra, onde estudou um menino chamado Jorge Carlos Fonseca, que viria a ser o quarto Presidente da República de Cabo Verde. É que, nem por ser pequenina, a Brava nunca deixou de dar à nação crioula uma importante contribuição para a sua identidade. Na política, na música, na literatura. Um dos nomes cimeiros da cultura cabo-verdiana era um bravense: Eugénio Tavares, que começou a escrever poesia em crioulo e é o autor de alguma das mais famosas mornas.
A escala na Brava foi uma visita de encantamento e sedução. Como disse a brincar um dos membros da tripulação, “Se não fosse a minha mulher, comprava aqui uma casa…”
José Pedro Castanheira
(No Oceano Atlântico, entre as ilhas Brava e Santiago)
Diário de Bordo 8 – Ilha do Fogo
Ainda não eram cinco da manhã quando um primeiro grupo de expedicionários largou do veleiro estacionado no Porto de São Filipe para tentar subir a pé ao vulcão do Fogo. 2.829 metros de altitude, quase mais mil que a Serra da Estrela, e mais quinhentos que a ilha açoreana do Pico, que é, como bem se sabe, a montanha mais alta de Portugal. Às nove horas, partiu um segundo grupo, bastante menos jovem que o anterior, menos ambiciosos nos seus propósitos, disposto a escalar até ao topo do vulcão secundário que entrou em atividade em 1995 e repetiu a proeza em 2014. Um terceiro grupo, formado pelo skipper e respetivo adjunto, ficaram a bordo, por razões de saúde (leia-se: uma arreliadora gastroenterite) e de segurança, posto que o “Cachaça” não estava numa marina mas tão só fundeado ao largo, em condições que não eram as melhores.
A esta altura, quem nos esteja a ler, atento e ansioso por saber mais novidades desta Volta a Cabo Verde em 15 Dias, já terá perguntado aos seus botões, se acaso tiver envergado uma vestimenta com os ditos cujos: mas afinal, com este paleio todo, em que raio dos três grupos é que embarcou o escriba-mor? Haverá mesmo leitores a murmurar a insinuação: não me digam que o homem se cortou e não teve nem pernas nem ambição para subir até lá acima…
O cronista, que antes de virar cronista é um reporter, se há um valor pelo qual procura pautar a sua condição, seja a de velho profissional de escrevinhador, seja a de simples aprendiz das artes de marinhar em navios à vela, embarcações afins e ofícios correlativos, esse tal valor que erigiu numa espécie de estrela polar orientadora da sua conduta em todos os domínios da vida e no relacionamento com o seu vastíssimo público, seja simplesmente leitor, seja radio-ouvinte, seja telespectador, seja consumidor de redes sociais, esse valor é a verdade, e não vou entrar agora em discussões de caráter filosófico, metafísico ou ontológico sobre o conceito, assaz complexo, da verdade, pelo que, e para não me alongar em demasia e procurar simplificar, de uma forma por todos atendível e entendível, sempre direi que esse dito valor é, senão a tal verdade, suprema e indiscutível, pelo menos a sua insistente e porfiada procura.
Bom, mas adiante, que já me estou a perder e confundir, e o que se espera deste diario de bordo da tripulação do “Cachaça” sobre o dia 7 de dezembro de 2024 não é que se aventure em deambulações abstratas e quase estractosféricas, nem que relembre e comemore os cem anos do nascimento do cidadão Mário Alberto Nobre Lopes Soares, nem que atualize os resultados do campeonato de futebol, com o Sporting e o Porto a afundarem-se e o SLB a manter-se cada vez mais à tona. O que se aguarde deste diarista é que finalmente cumpra o anteriormente prometido e diga se se atreveu, ou não, a trepar ao vulcão.
Pois a verdade é que, no momento alfa ou omega, em que um homem tem mesmo de tomar uma decisão, ponderadas todas as circunstâncias circunstanciais, as capacidades físicas, as disponibilidades mentais e psicológicas, a pulsão do jornalista repórter veio ao de cima e sobrepôs-se aos ímpetos conjuntos do caminhante, do atleta, do montanhista e do candidato a alpinista, desejosos de averbar mais um vitorioso troféu, a somar-se a muitos outros de semelhante jaez.
Pois como se ia dizendo, a referida pulsão foi mais forte. O cronista, enquanto repórter, até já tinha subido ao Fogo há 28 anos, quando cobriu para o semanário Expresso a erupção vulcânica de 1995. E se então não chegou a tocar no céu, em bicos de pés, no ponto mais alto da alta montanha, o facto é que ascendeu até onde lhe foi possível ao vulcão lateral que entrara em atividade, demonstrando insofismavelmente que no seu interior se aloja um imenso dragão que, quando acorda mal-disposto, é mesmo o diabo em pessoa. E se nessa época não trepou mais alto, não foi por falta de muita vontade e ainda maior determinação, mas porque, quanto mais subia, mais calor ia sentindo e mais insuportavelmente quente estava aquela mescla de areia preta, poeiras, gravilha, pedras e calhaus, bombas, piroclastos e demais materiais expelidos da chaminé vulcânica. Ou seja, o mesmo vulcão, agora adormecido e temporariamente domesticado, já não tinha tanto interesse quanto aquele que, ha quase três décadas, encontrara bem acordado, vermelho de raiva, a fumegar de furor, furioso e a ferver de quase louco – e sobre essa inesquecível experiência até escreveu uma reportagem, a que deu o título de “O sussurro do dragão”, ilustrada com numerosas fotografias que ele próprio fizera, não com um telemóvel, pois que ainda não chegara o seu tempo, mas com uma máquina fotográfica daquelas a sério.
Na véspera, ao jantar no Tropical Clube, o escriba conhecera o guia desta expedição e logo intuíra que melhor que Fausto do Rosário não poderia encontrar. Era matéria-prima do mais alto coturno. Oportunidade única para, em vez de repetir sem novidade o que já vira, fizera e escrevera, descobrir o resto, certamente que imenso, da ilha.
Sendo assim, e enquanto os seus companheiros se fizeram à pata à conquista da montanha, o cronista foi dar uma volta de carro à ilha, guiada pelo já amigo Fausto, que tudo lhe mostrou e de tudo lhe falou, com o conhecimento, a informação, o rigor e a generosidade que só os sábios e os homens-bons possuem.
Dessa inesquecível volta pelo Fogo se dará conta noutra oportunidade, e para tanto se apela à compreensão do leitor. Da etapa foguense – a quinta desta volta a Cabo Verde por nove das suas ilhas – apenas mais se dirá que teve um ponto muito alto na famosa Chã das Caldeiras, palco principal das tragédias humana das três últimas erupções: a de 1951, a de 1995 e a de 2024. Mas também da teimosia, coragem e vontade de tudo refazer por parte da população residente na Chã. Como não se cansou de dizer Fausto do Rosário, “é isso a resiliência. Nós, foguenses, desafiamos o impossível.
PS 1 – Para a história desta viagem, e até para os anais do vulcão do Fogo, sempre se dirá que o grupo da malta nova (três primos Castanheiras: os marinheiros Afonso e Nuno Miranda, e o acompanhante Gonçalo) subiu e desceu até ao topo do vulcão em menos de quatro horas , num percurso de cerca de 12 quilómetros. Já o grupo do pessoal reformado (o marinheiro e “chef” Nuno Castanheira, a mulher e médica Helena Oliveira e a acompanhante, amiga e bióloga Manuela Cunha), muito mais rigoroso em matéria de cronómetro e pedómetro, cortaram a meta dos 4,650 quilómetros em 1 hora 23 minutos e 42 segundos. Caros leitores e caras leitoras: palmas para os corajosos!
PS 2 – O atraso desta e de algumas das anteriores páginas do Diário de Bordo é justificável por várias razões. O cansaço, certamente, o sono, concerteza, a falta de inspiração, inevitavelmente, e a inconstância do acesso à internet, que ainda não consegue cobrir todos os metros quadrados do vasto Oceano Atlântico.
José Pedro Castanheira
(7 de dezembro, porto de São Filipe, ilha do Fogo)
Diário de Bordo 7 – A caminho da Ilha do Fogo
Após a dupla jornada na ilha de Santo Antão, seguiu-se um dia inteiro de viagem até ao Fogo.
Já sabíamos que seria a mais longa etapa desta volta: 132 milhas náuticas (seja 244 quilómetros), para as quais haviam sido calculadas 22 horas. O que não estava programado foi a trovoada que insistiu em acompanhar o “Cachaça” durante quase toda a noite.
A largada de Porto Novo foi ao final da tarde, com a “ilha verde”, na hora da despedida, a acentuar as razões porque tem mais encantos (VER FOTOGRAFIA). O pôr do sol, que nesta época do ano acontece por volta das 18 horas, tem lugar cativo nestes diários de bordo. Neste caso, o astro que nos aquece e dá vida foi-se escondendo atrás da ilha montanhosa, a estibordo (VER FOTOGRAFIA), enquanto a bombordo a vizinha ilha de São Vicente se ia preparando para enfrentar o escuro de uma noite sem luar, com as luzes da cidade do Mindelo e do seu grande e movimentado porto a ganharem vida. Depois da opípara almoçarada no Babilónia de Leão Lopes, ninguém sentia a necessidade de um jantar de faca, garfo e guardanapo. Optou-se por uma ligeira sopa de tomate em pó da Knorr com ovo cozido, acompanhada por croutons do Pingo Doce que o João Blasques nunca se esquece de incluir na bagagem. As escalas de vigia noturna já vinham programadas de Lisboa e ao escriba-mor, que faz sempre equipa com o filho Afonso, coube-lhe a da meia-noite às duas. Cansado, como os demais tripulantes, aproveitou para dormir um pouco antes de cumprir as suas duas horas no convés. Quando o irmão Nuno, que o antecedeu na escala, o acordou para que o rendesse, deu-lhe a novidade: estávamos a navegar na companhia de uma insistente e arreliadora trovoada. Trovoada longínqua, mesmo muda, posto que nunca se ouviu o ribombar de um só trovão, mas que se prolongou por cerca de quatro horas. Com o céu sem luar e coberto de nuvens, também não era possível arregalar os olhos perante o desenho sempre diferente mas sempre espetacular dos relâmpagos a descerem velozes e a riscarem o breu de estonteantes zigue zagues. Tudo quanto nos era dado observar era o céu a ser repetidamente iluminado, a uma cadência irregular mas que por um longo período chegou a ser de dois em dois ou três em três segundos. E se ao princípio a tempestade rebentou a estibordo, viria mais tarde a fixar-se à ré do veleiro, parecendo pairar, quem sabe, lá para os lados de Santo Antão e São Vicente.
Parecia que, lá no Olimpo onde tudo decidem, os deuses haviam entrado em acesa discussão sobre o que fazer com esta expedição náutica em torno das ilhas de Cabo Verde. Já nas anteriores incursões, aos Açores e à Madeira, eles se haviam intrometido, chegando mesmo a pô-las em risco, mas desta vez ainda não tinham dado qualquer sinal da sua graça. A borrasca entre alguns dos deuses terá sido valente, visto que até chuva fizeram cair sobre o catamaran, mas ao final optaram por o deixar prosseguir em paz e sossego, não fazendo uso das suas armas mais poderosas, seja agitando as ondas do mar, seja soprando ventos indomáveis. Pelo menos por enquanto…
Chegada a aurora, já não havia sinais da tempestade e a viagem prosseguiu sob um céu azul e limpo. Quem não a tivesse visto com os seus próprios olhos, certamente não acreditaria. O escriba atreveu-se então a um duche na casa de banho da luxuosa suite. Nunca tal o fizera, mas não há como experimentar. Duche de água doce e fria, convenientemente racionada, com muito gel de banho. Que bem que lhe soube!
O almoço teve a assinatura do “chef” Nuno. Já habituado a estas lides, sabe que não vale a pena inovar nas ementas e que o bom senso manda que se passe o mínimo de tempo na cozinha, no fogão ou no forno. Velejar não é propriamente um desafio gastronómico e a marinhagem, regra geral, não é exigente – é malta que se contenta com pouco, só não quer é ficar esfomeada. Feijão frade enlatado da Compal, atum em lata da Frescomar e, de novo, ovo cozido, tudo regado com azeite Andorinha, igualmente enlatado, acompanhados de cerveja ou vinho. E como o destino era o Fogo, nada melhor que um branco fresco local, da marca Chã.
Tranquila e sem história, a viagem só se animou à vista da ilha do Fogo, que de longe tem a configuração de um cone (VER FOTOGRAFIA). Se houvesse um vulcanólogo a bordo, seria a altura para ele brilhar, explicando que a ilha resultou da erupção de um vulcão submarino e que o tal cone é apenas a parte visível. A aproximação permitiu descortinar, a estibordo, dois pequenos ilhéus, o Seco e o Rombo, pertencentes à ilha Brava, mas esta, apesar de tão próxima do Fogo, manteve-se escondida, envolta numa espessa névoa. Sabendo que também terá a nossa visita, a Brava preferiu reservar-nos a surpresa da descoberta.
Fundeados no porto de São Filipe, seguiu-se o que o ouvinte já estará a adivinhar: um bote de pesca a levar a tripulação para terra, o aluguer de uma Hiace e ala para a cidade. Infelizmente a tarde já ia avançada e não deu para grandes incursões na capital, que tem a fama de estar muito bem conservada e ostentar traços vincadamente portugueses.
Para o jantar, o nosso guia foguense, Fausto do Rosário, reservou mesa no Tropical Clube. Não colhendo a unanimidade, muitos foram os que manjaram uma especialidade local, peixe serra condimentado com coco e caril. Muito interessante, a mistura. Para matar a sede, além da cerveja Strela que nos acompanha há uma semana, testou-se o rosé da Chã. Nada de especial.
O jantar foi rápido: o dia seguinte adivinhava-se muito exigente e cansativo, com a subida ao vulcão do Fogo, pelo que haveria que acordar muito cedo e retemperar energias. Uma vez sem exemplo, a proposta de subida a pé ao vulcão – 2829 metros de altitude, quase mais mil que a Serra da Estrela – dividiu completamente os membros da tripulação. E se há os que, marinheiros empedernidos, optaram por permanecer no barco, outros não se entenderam quanto à extensão do percurso e à meta a atingir.
Pois é, caro ouvinte, o escriba pôs-se a pensar, hesitou no que fazer, sopesou as várias alternativas, que confrontou com as suas capacidades, desejos e prioridades. E decidiu. Mas do sentido dessa magna decisão só lhe dará conta amanhã.
PS – mais que um recebedor deste Diário de Bordo alertou para uma incorreção cometida quando se identificou o presidente da câmara municipal de Porto Novo derrotado nas eleições autárquicas de 1 de dezembro. Tratou-se de Aníbal Fonseca e não de Mário Fonseca. Aqui fica o reparo, com o devido pedido de desculpas ao próprio e aos leitores.
José Pedro Castanheira
(7 de dezembro, “Cachaça”, porto de São Filipe, ilha do Fogo)
Diário de Bordo 6 – Santo Antão – Parte 2
A alvorada foi mais tardia que o costume, porque um homem não pode andar sempre a toque de caixa. Tomado o pequeno-almoço na pequena residencial Caraíbas, a tripulação embarcou de novo na Hiace do senhor Adelino, mais uma vez sob a orientação do alegre e disponível “Tony”. Se na véspera calcorreáramos o norte da ilha – a tal parte verde, verde, verde -, o plano reservara para hoje o lado sul – seco, seco, seco. Destino final: Tarrafal de Monte Trigo, um pequeno porto de pesca recentemente descoberto como mais uma das muitas atrações turísticas desta ilha de enormes potencialidades. Descoberto, foi o verbo escolhido pelo escriba, e em boa hora o fez. Durante décadas, mesmo séculos, aquele Tarrafal, que ao contrário dos seus dois homónimos de Santiago e de São Nicolau, nunca foi prisão política, muito menos campo de concentração, viveu totalmente isolada e abandonada. Só acessível a pé (ou com ajuda de um quadrúpede) ou por via marítima. Até que foi construída uma estrada de paralelepípedos de basalto, a principal matéria-prima da ilha.
As paragens pelo caminho são obrigatórias. Para o viajante se espantar perante as profundezas cavadas nas rochas vulcânicas pelas muitas ribeiras que descem ziguezagueado da montanha; para sentir a forte ventania a soprar no miradouro de Campo Redondo; para desfrutar do espetáculo do que, há muitos milhões de anos, foram sucessivos vulcões, ao mais impressivo dos quais foi dado precisamente o acertado nome de Campo Redondo (ver fotografia); para descobrir, pequenininha, lá muito longe, brotando no meio de uma parede rochosa, uma cascata que não corre o risco de secar, bastante para fornecer o Tarrafal de água e regar os poucos mas férteis terrenos agrícolas, onde cresce o milho e o verdíssimo inhame. E se gostar de animais e tiver tempo, até pode abeirar-se de um ou outro curral de cabras, verificar as condições miseráveis em que vivem, e até pegar num cabritinho, branco, preto, castanho ou malhado, que sempre consegue sair do redil e, não receando os humanos, deles se aproximam a balir com o seu inconfundível méeeeeee, à espera de uma retribuição, seja um qualquer alimento, seja uma fotografia para mostrar à família…
Consta que a praia do Tarrafal de Monte Trigo será a melhor da ilha (ver fotografia). Areia preta, água limpida, rica em peixe e crustáceos, o povoado é habitado por um núcleo de pescadores e por estrangeiros caídos de paraquedas. O que não se compreende é que a estrada, novinha em folha, de paralipipedos, que serpenteia e sobe a montanha antes de descer para o povoado, acabe inexplicavelmente a duas ou três centenas de metros do Tarrafal, num espaço que mais parece uma lixeira. E não há sinais visíveis de que a obra venha a ser prolongada.
À míngua de tempo, a tripulação e acompanhantes, que até se haviam equipado para ir a banhos, não tiveram remédio senão engolir em seco. O almoço, concertado de véspera, aguardava-os. A estrada foi a mesma, posto que única, mas em sentido inverso. Agora bem mais veloz e sem paragens, sempre num cenário de secura que só não é absoluta porque pintalgada de quando em vez por um pequeno oásis de um verde muito vivo, que se percebe ser raramente habitado, mas que inegavelmente acarinhado, como o atestam as pequenas plantações em socalcos de milho e cana de açúcar, cujas folhas e hastes superiores se bamboleiam ao sabor de um vento forte que chega a ser refrescante.
O almoço foi no Babilónia, que mais que um restaurante é a face visível do Projecto de Desenvolvimento Comunitário de Lajedos, animado por uma ONG fundada por Leão Lopes, um dos mais respeitados artistas do país, de que foi ministro da Cultura. A Babilónia é uma verdadeira surpresa, pela novidade que encerra, pela frescura e criatividade que transpira, pela extrema simpatia com que acolhe clientes e visitantes. E, já agora, pela qualidade da ementa. A casa estava cheia de grupos de turistas, sobretudo franceses, que se aventuram a pé pelo interior de Santo Antão. Ali, como em muitos outros locais, desta e de outras ilhas, sente-se a celebrada morabeza do povo cabo-verdiano. Foi nesse mesmo espírito que o escriba saudou quatro pessoas para quem fora preparada uma mesa especial em local mais recatado. Ignorava quem seriam, mas “Tony”, o nosso atentíssimo guia, logo se aproximou para segredar: “Aquela senhora é a nova presidente da câmara de Porto Novo”.
Nas eleições autárquicas de domingo, 1 de dezembro, o MpD, o partido no poder, averbou em Porto Novo uma das suas mais inesperadas derrotas. Mário Fonseca, um dos dinossauros do poder local, economista e alto quadro da banca, perdeu a câmara da capital da ilha para o PAICV, o antigo partido único, que, ainda sob a designação de PAIGC, conquistou a independência do país em 1975.
Há que dizer que em breve Santo Antão se tornou num reduto da oposição ao regime de partido único. Nesta ilha, no início dos anos oitenta, registaram-se mesmo alguns incidentes de grande violência, na contestação à aplicação de uma muito contestada lei da reforma agrária, que procurava alterar um secular sistema de propriedade fundiária. “Tony”, o nosso guia, então muito jovem, esteve ele próprio envolvido nesse combate contra essa política do PAICV, vindo inclusivamente ser preso por escritos que então assinou na imprensa.
Todas as três câmaras da ilha estavam nas mãos do MpD, e é este contexto que explica porque a vitória do PAICV em Porto Novo foi uma das grandes surpresas eleitorais. O escriba, que jamais se esquece que, antes de o ser, já era um velho repórter, não resistiu e quis conhecer a candidata vitoriosa, no que foi acompanhado por todos os companheiros. Elisa Pinheiro, assim se chama a nova presidente, é a única mulher eleita para dirigir uma das 22 câmaras do país. A esta novidade de género, acrescem outras: é relativamente jovem (47 anos), factor que mobilizou o determinante voto de uma juventude desiludida e sem horizontes; é arquitecta , licenciada e doutorada pela Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa; tem dupla nacionalidade, cabo-verdiana e portuguesa; e é uma retornada, na medida em que trocou a segurança e estabilidade de Lisboa, onde chegou a trabalhar num dos mais importantes ateliês, pelo desafio de uma gestão autárquica numa das mais abandonadas mas promissoras ilhas do país. Razões de sobeja para uma fotografia de família, tendo ao centro a nova edil e o escriba-mor (ver fotografia), que não perdeu o ensejo para uma portuguesíssima “cunha”: concluir a estrada que liga Porto Novo ao Tarrafal de Monte Trigo. “Cunha nenhuma”, respondeu de pronto a presidente eleita, “tem toda a razão e é um dos muitos pontos do nosso programa eleitoral”.
Eram horas de regressar a Porto Novo e preparar o catamaran para prosseguir para o Fogo. A última parcela da viagem no Hiace foi particularmente divertida. Os protagonistas voltaram a ser os nossos convivas crioulos: Adelino Pires, o motorista, e, a seu lado, António Santos, “Tony”, o guia. Já aqui se disse das simpatias deste último pelo MpD, de que chegou a ser deputado nacional por Santo Antão, tendo recusado vários convites para candidaturas autárquicas. Do que não se disse, foi das antipatias de Adelino pelo mesmo MpD. Que o levaram, no plano autárquico, a candidatar-se ao seu concelho de Ribeira Grande pela UCID, uma pequeníssima formação com representação parlamentar, mas como último dos suplentes. Já no plano nacional, Adelino assumiu-se claramente como um simpatizante do PAICV. E foi ouvi-los, numa disputa permanente, sobre o que fora a obra de um e de outro partido na ilha. Bom conhecedor de todas as estradas e caminhos, Adelino ia atribuindo a autoria de quanto íamos percorrendo a um ou outro dos dois partidos que se vão alternando no governo do país, com vantagem clara para o PAICV. Já “Tony”, muito mais político e articulado que o antagonista, não deixou de lhe dar constante réplica, insistindo em particular na necessidade do PAICV “aprender o que é a democracia”. Um diálogo sempre divertido, espicaçando-se mutuamente e arrancando da assistência, nos bancos traseiros da Hiace, sonoras gargalhadas e constantes provocações. Um debate usando toda a panóplia de argumentos. Mas a um, apontado por Adelino, “Tony” não foi capaz de responder: “Está a ver ali aquela cabra melhorada ao pé das outras? É porque é do PAICV!”
Antes de nos deixar no cais de Porto Novo, para a transfega para o “Cachaça”, a Hiace branca fez uma última paragem. Alguém pedira ao motorista para se deter numa loja do chinês, para comprar umas coisinhas que faziam falta no barco. Parecendo ofendido, em vez do chinês, deteve-se no minimercado Lopes, à entrada da cidade. “Esta loja traz quase tudo de Portugal”, justificou-se, com inteira razão. E nele se encontrou quase do tudo quanto era necessário: um pente para o cabelo, palha de aço, sabonete, detergentes para as casas de banho e outro para lavar a roupa à mão, e molas para a pendurar. É assim a vida a bordo.José Pedro Castanheira
Diário de Bordo 5 – Santo Antão
A viagem entre São Vicente e Santo Antão (duas horas de mar para cobrir as 9 milhas náuticas, pouco mais de 16 quilómetros) nao teve história digna de figurar neste Diário de Bordo. Adiante, pois, que não há tempo a perder com miudezas de percursos semelhantes aos de uma vulgar ida às Berlengas… Fundeado o “Cachaça” na baía de Porto Novo, um pescador tratou de nos levar num bote para o cais, de onde partimos à descoberta de Santo Antão, a ilha verde.
À saída do terminal do ferry aguardava-nos o nosso guia, António Santos ou “Tony”, um funcionário público reformado e ex-deputado do MpD, o partido do governo, e que se dispôs gentilmente a acompanhar esta expedição. O meio de transporte foi, mais uma vez, uma carrinha Toyota Hiace, com lotação para 15 pessoas desde que bem arrumadinhas, e que é o principal veículo de transporte público em Cabo Verde. A Hiace deste primeiro dia em Santo Antão foi a de um pequeno empresário, Adelino Pires, que conhece todas as curvas e contracurvas e sobretudo as subidas e subsequentes descidas.
Segunda maior ilha do país em termos de superfície, Santo Antão está dividida em duas partes bem distintas: o lado sul, bastante mais plano, exposto ao sol, e seco, seco, seco; e o lado norte, muitíssimo montanhoso, fresco, e verde, verde, verde. A passagem do lado sul, onde fica a capital, Porto Novo, para o lado norte, onde vive a maioria de uma população em sucessiva perda demográfica, faz-se principalmente através de uma estrada montanhosa, herdada do tempo colonial. É uma viagem fantástica, para se fazer devagar-devagarinho, que revela as diferenças flagrantes entre as duas metades da ilha, e de uma beleza indescritível. O cronista, que já estivera na ilha por duas vezes, confessa que lhe escasseiam os recursos para a descrever, desenhar, pintar, modelar. Faltam mesmo os adjetivos que mais de adequem à paisagem de uma natureza em bruto, tingida de múltiplos tons de verde, a que o homem se foi timidamente adaptando e transformando ao longo de séculos.
A chamada estrada da corda, que percorre o topo das muitas montanhas que ora se sucedem, ora se cruzam, é um fascínio de causar arrepios. O miradouro preferido é o que nos revela, de um lado, cá em baixo, a Ribeira da Torre, enriquecida no seu caudal por uma cascata de muitas centenas de metros de altura, e, do outro, a Ribeira Grande. Duas ribeiras que se unem antes de desaguarem no oceano na cidadezinha que foi buscar o seu nome a uma delas, a Ribeira Grande. Sob o risco de ser apressado e injusto, até porque ainda nem conhece todas as ilhas, o cronista atreve-se a dizer que esta será, muito provavelmente, a paisagem mais espantosamente bela de Cabo Verde (ver fotografia). Uma afirmação certamente ousada, a ser confirmada, ou não, daqui a uma semana, quando se concluir este périplo por Cabo Verde em 15 dias.
O almoço, o desejado e merecido almoço, foi no restaurante Melícias, na estrada que corre paralela à Ribeira da Torre. É uma das inúmeras ribeiras que nascem em parte incerta nas montanhas e que, na época chuvosa, que se concentra nos meses de julho a setembro, correm, fresquisssimas, abundantes, mesmo perigosamente imparáveis, até ao Atlântico. Sobre o almoço, o leitor que de preparar para salivar, que vale a pena. Um manjar, pela sua variedade, riqueza e bem servir, digno dos deuses: esmoregal (o peixe que continua a liderar as preferências) e atum, carne de porco e frango assado, ovos de codorniz, fruta-pão, mandioca, inhame, abóbora, batata doce, lentilhas, arroz, batata frita, salada… Tudo fresco, de qualidade e em quantidade. Com muita cerveja Strela, sumo de cana de açúcar e de maracujá, e café, acompanhado do famoso grogue de Santo Antão. Contas feitas, deu 13 euros por cabeça, já com gorjeta. O leitor acha caro?
O repasto nem foi muito demorado. Melhor, no entanto, fizeram os outros grupos de clientes deste agradável restaurante ao ar livre na beira da estrada, que trataram de o encomendar antecipadamente. Pequenos grupos, todos estrangeiros, várias nacionalidades, de caminhantes ou montanhistas, que vêm no ferry de São Vicente, tomam uma Hiace em Porto Novo, passam para o outro lado da montanha, hospedam-se em pequenos hotéis, pensões e residências particulares, e durante alguns dias se atiram aos numerosos trilhos das montanhas, numa descoberta sempre renovada das originalidades e belezas menos conhecidas de Santo Antão. Um tipo de turismo que até resistiu aos tempos negros da pandemia, sustentável, portanto, que respeita a identidade da ilha e que nada tem a ver com o modelo de turismo de massas, importado por outras ilhas e com consequências absolutamente devastadoras. Foi o que, ao final da tarde, nos explicou Leão Lopes, um intelectual e artista de renome, que foi ministro da Cultura em anterior governo do MPD, e que aposta com todas as suas forças num modelo de desenvolvimento alternativo para a sua ilha. “Os responsáveis políticos do país, governo e oposição, têm de perceber que Santo Antão é uma dádiva!”
A jornada santoantonense prosseguiu até à Ponta do Sol, um minúsculo porto de pesca na extremidade da ilha, onde em tempos foi construído um aeródromo, que, por demasiado curto na sua pista, sujeita a ventos cruzados, intensos e irregulares, rapidamente foi desativado (ver fotografia). De modo que Santo Antão, apesar da sua grande extensão, é, de par com a pequena e rebelde Brava, das únicas ilhas a que não há acesso por avião, o que constitui uma aparente desvantagem em relação às demais, mas que também pode ser encarada como uma vantagem de longo prazo.
Pela Ponta do Sol passa, a acreditar no que se lê num pequeno memorial, o meridiano que serviu de base às intensas negociações políticas e geostratégicas que, no século XV, deram origem ao famoso Tratado de Tordesilhas, através do qual os reis de Portugal e Espanha dividiram entre si o planisfério em matéria de descobertas marítimas a promover (ver fotografia). Um tema assaz controverso na historiografia mundial e que continua a fazer o encanto dos historiadores sobre aquela época, em que ambas as potências ibéricas deram novos mundos ao mundo.
José Pedro Castanheira
(4 de dezembro, no porto de Porto Novo, ilha de Santo Antão)
Diário de Bordo 4 – São Vicente
A segunda etapa desta Volta a Cabo Verde foi cumprida na noite de 2 para 3 de dezembro. Ligou as ilhas de São Nicolau a São Vicente, mais exatamente – que o cronista prima por ser rigoroso – o porto do Tarrafal ao do Mindelo. Ao todo, 47 milhas náuticas, ou seja, 87 quilómetros. Largada do Tarrafal pelas 22.00 horas, chegada ao Mindelo pouco depois das 07.00 horas, cabendo ao cronista fazer parte do primeiro turno de vigilância noturna. A noite até começou bem, com um vento a soprar forte e a empurrar o catamaran “Cachaça”, rápido e lampeiro, de vela grande e genoa abertas. Infelizmente o vento, que como se sabe é um ser incontrolável, passou a soprar demasiado, o que obrigou o skiper a usar da prudência e a recolher a genoa. E foi ver quatro homens e oito mãos, à uma, a puxar o cabo que enrola aquela vela. Quando no final do turno desceu ao camarote, no casco de estibordo da proa, o cronista não imaginava o que o esperava. O vento rebelara o mar e durante o resto da noite, escura como breu, foram chapadas atrás de lambadas das ondas no casco, a salpicar o sono justo de quem bem merecia um descanso para melhor poder enfrentar a jornada seguinte.
Com isso, nem se deu pela passagem do veleiro pela ilha de Santa Luzia, uma das dez do arquipélago e a única que, por não ser povoada, foi excluída deste programa de festas. Escondida e envergonhada no escuro da noite, de Santa Luzia sobrou apenas a luz titubeante de um pequeno e fraco farol, avistado de muito longe pelo vigia de serviço.
Na marina do Mindelo, a única existente em Cabo Verde, a tripulação estreou-se na delicada e complexa operação de acostar o catamaran, uma embarcação muito maior que os veleiros tradicionais a que estes marinheiros amadores se acostumaram. Tomado o pequeno-almoço no Café Royal, seguiu-se um banho generalizado dos sete tripulantes, o que já não acontecia há alguns dias. O balneário da marina é um pouco decrépito, sem vestuários e apenas com água fria, ainda por cima racionada. Mas soube muito bem, passar água e sabão e mais água por todo o corpo e vestir roupagem limpa, bem cheirosa e engomada. Um homem até parece que rejuvenesce.
A nossa guia no Mindelo foi a Ana Cordeiro, uma portuguesa que trocou há muitos anos Portugal por São Vicente, onde desenvolveu trabalho de monta, por todos reconhecido, no âmbito do Instituto Camões. O escriba conheceu-a na sua ilha de adopção há quase trinta anos, quando ela o convidou a apresentar um livro que provocou acesa polémica em Cabo Verde, chamado “Quem Mandou Matar Amílcar Cabral?”. Talvez possamos voltar a esse assunto mais à frente neste diário. Agora, há que registar o passeio que a Ana nos proporcionou pelas ruas, praças e edifícios como o Centro Cultural do Mindelo, o Clube Náutico, a Câmara Municipal (que conserva na fachada o escudo da antiga potência colonial), o Palácio Presidencial , a igreja de Nossa Senhora da Luz e o mercado municipal. Memórias do Mindelo, que viveu a sua glória nos séculos XVIII e XIX, graças à fantástica, larga e segura baía, virada para Santo Antão e protegida pelo Monte Cara, onde nem é preciso grande imaginação para nele descortinar o perfil de um ancião em que alguns notam semelhanças a George Washington.
Do antigo e afamado porto destinado a abastecer de carvão os navios ingleses no seu permanente vai-vem entre a Europa e a América já pouco resta. Ainda assim vale a pena atentar nos painéis de azulejo da Praça Estrela – hoje transformada num mercado africano – e que ajudam a reconstituir, a azul e branco, o que foi a cidade nos seus anos de ouro, em que a comunidade britânica ali instalada eram quem ditava mais cartas.
No rápido deambular pelo centro histórico, valeu a pena subir os três andares da Torre de Belém, um pastiche da genuína ali edificada vai para um século e na qual o Governo cabo-verdiano aproveitou para criar um pequeno mas interessante espaço museológico. Temia-se que estivesse repleta de hordas de turistas despejados, manhã cedo, por um navio cruzeiro mastodôntico, mas felizmente para nós não havia quase ninguém. No alto deste émulo da Torre de Belém desfruta-se uma belíssima vista sobre a baía (ver fotografia), pejada de embarcações de todos os tipos, feitios e nacionalidades, de pesca, recreio, comércio e carga, a comprovar que São Vicente permanece toda ela virada para a atividade portuária – e nisso reside muito da sua singularidade histórica e cultural. Com a diferença que ao depósito do carvão britânico sucedeu a indústria menos suja do turismo.
O final da manhã esteve reservado para uma atividade lúdica: um banho na praia de S. Pedro, na companhia de … tartarugas. Alugou-se uma Hiace à saida da Marina e lá fomos, quase todos, de trouxa debaixo do braço. São tartarugas residentes, visto que se habituaram a que pescadores e turistas, mais estes que aqueles, as alimentem diariamente, dispensando-as do esforço a que todo o animal, incluindo o bicho-homem, é obrigado. O negócio é simples. Um pescador – no nosso caso, o senhor Luís, presidente da Associação de Pescadores da Praia de S. Pedro – leva os interessados de barco até meio da baía, chama aqueles grandes répteis marinhos acelerando o motor fora de bordo e jogando para a água pedaços de peixe. Consta que o isco preferido é a sardinha, e minutos depois é vê-las a aproximarem-se do barco, cabecinha fora de água ou a nadar pachorrentamente a meia nau. O mar é tranquilo, a água é limpissima e amena, quem quiser pode mergulhar, o senhor Luís até disponibilizou óculos submarinos. O cronista nem hesitou (ver fotografia) e lá esteve, divertido, a confraternizar com os bichanos, alguns deles com um bom metro de comprimento e certamente que muitas dezenas de quilos. São amáveis, aproximam-se sem temor e até se deixam tocar pelos mãos e pés dos banhistas.
O almoço foi num dos vários restaurantes da praia. Peixe grelhado para toda a gente. Na escolha da estreita ementa, ganhou, contra a garoupa e o atum, o esmoregal, que passou a ocupar o top das preferências gastronómicas.
Ao volante do seu Hiace branco, limpo a preceito, o José Delgado levou-nos pelo interior da ilha. No alto do Monte Verde, que de verde tem muito pouco, os horizontes estavam demasiado toldados pela névoa. Da cidade do Mindelo, que não cessa de se estender, montanha acima, fazendo lembrar as favelas brasileiras, pouco se conseguia ver em pormenor, salvo as colunas de fumo que saem em contínuo da queima desordenada e caótica de lixo urbano. A leste, recortava-se a ilha de Santo Antão, uma muralha imensa e escura de rocha, esmagadora. A oeste, a silhueta de Santa Luzia não passava de uma vaga impressão. Já a norte era perfeitamente visível a Baía das Gatas, que acolhe todos os anos um dos mais famosos festivais de Músicas do Mundo (ver fotografia).
Uma das ilhas mais áridas e secas, São Vicente não tem muito mais que ver. São Vicente é o Mindelo, a segunda cidade do país e o seu tradicional pólo cultural. E ao Mindelo regressámos. O nosso improvisado guia levou-nos ao cemitério. Fazia questão de nos mostrar a campa da mais famosa das filhas de São Vicente: Cesária Évora. O escriba sabe, por experiência própria de muita reportagem que assinou, mundo fora, que um cemitério é uma especie de cartão de visita do lugar ao qual dá serventia. O do Mindelo, que nunca percorrera, não é excepção e valeria mais tempo e atenção. Fiquemo-nos por Cesária. A “diva da morna”, como ficou conhecida, que passeou a música e a poesia cabo-verdianas por todo o lado, é a figura mais conhecida, admirada, cantada e adorada do país. Na sua ingenuidade, o cronista admitiu que a campa de Cesária tivesse a dignidade que a sua imagem e memória recomendariam. Puro engano. O túmulo onde repousa só se distingue dos demais por não ter uma cruz, e por referir apenas a identidade da mãe, percebendo-se pela omissão que era filha de pai incógnito. A placa de mármore parece ter sido objecto de violação. Quanto a flores, muitas, eram todas de plástico, que o tempo e o sol se encarregaram de quase descolorir. Valham as muitas conchas e búzios que cobrem a campa, votada a um semi-abandono. A fabulosa intérprete do “Sodad” merecia mais respeito.
Cesária está por todo o lado. A começar pelo fabuloso painel esculpido por Vlils numa das paredes no centro histórico. E por falar em cultura, seria criminoso omitir o Centro Nacional de Artesanato e Design, CNARTE. Edifício imperdível, pela ousadia, cores e imaginação, a fazer lembrar o que também foi o centro Georges Pompidou em Paris.
À noite, no restaurante Tchicau onde a tripulação se reuniu, depois de uma muito engraçada conversa com o escritor cabo-verdiano Germano Almeida, o jantar foi literalmente regado pelo embalar da música de Cesária, na voz da cantora Idília, acompanhada à viola por Manecas. O manjar, com que a proprietária brindou a marinhagem do “Cachaça”, foi digno dos deuses. Ainda assim, foi a música de Cesária, cantada, batucada e até dançada por estes marinheiros e acompanhantes, que mais perdurará nos anais desta Volta a Cabo Verde.
De regresso ao seu camarote, à falta de inspiração, o cronista trocou o iPad pelo remanso quente do saco-cama. E não admira que tenha adormecido a cantarolar, embalado, já não sabe se por uma morna se por uma coladera.
José Pedro Castanheira
(4 de dezembro, Porto Novo, ilha de Santo Antão)
Diário de bordo 3 – Chegada a S. Nicolau
“Bem vindos a Cabo Verde”. A saudação, à chegada a São Nicolau, foi expressa com um sorriso de boas vindas e envolta num abraço por José Cabral, que se dispôs a ser o nosso guia na visita à ilha que marcou a primeira etapa desta Volta a Cabo Verde em 15 Dias. Militante apaixonado da história e do património da ilha e das suas especificidades, fez questão de marcar a fronteira em relação à ilha do Sal da atualidade. “Sal não é Cabo Verde. No final da vossa visita, compreenderão porquê”, sublinhou, gestos largos a reforçar quanto dizia, para sublinhar o orgulho que exala pela terra que viu nascer Baltasar Lopes, o mais reputado dos escritores cabo-verdiano, e onde foi criada a mais famosa e internacional das mornas crioulas.
Depois das peripécias que marcaram a partida do Sal, esta expedição lá arrancou, com um dia de atraso em relação ao previsto. O monocasco “Prosecco”, da charter espanhola Alboran, não estava em condições de navegar com o mínimo de segurança, pelo que foi substituído por um catamaran. Tudo somado, ficámos a ganhar com a troca. A começar pelo próprio nome: “Prosecco” não é nome que se dê a uma embarcação de recreio, cuja tripulação encara o andar à vela como um prazer e uma forma de celebrar a alegria de viver, a boa disposição e a amizade. Já o catamaran foi batizado com um nome muito mais apropriado ao espírito e à letra desta singularíssima regata. Calcule o leitor que o novo veleiro chama-se “Cachaça”! Ou mais corretamente “Cachaca”, mas aqui para nós alguém se enganou ao escrevê-lo, ou porque não sabia grafá-lo corretamente, ou porque no estaleiro onde o catamaran foi construído não havia uma cedilha, o adereço que faz com que o vocábulo cachaca seja promovido a cachaça. O que é certo é que quando a tripulação tomou posse do catamaran houve quem entoasse, baixinho, a conhecida estrofe “há quem diga que cachaça é água, cachaça não é água não…”
Entre o Sal e São Nicolau foram 16 horas de viagem, para cobrir as 86 milhas náuticas que separam os portos de Palmeira e de Tarrafal. Ou seja, 159 quilómetros. A viagem não teve história, salvo um desagradável episódio de caráter gastro-intestinal de um dos tripulantes, e um pequeno acidente com o escriba-mor. Ao cair da noite, estando a dormitar no seu luxuoso camarote, esqueceu-se de fechar hermeticamente a escotilha e acordou como se tivesse levado com um balde de água em cima. Pelo menos foi isso que logo pensou, rogando pragas ao presumível autor de tamanha graçola, para depois perceber que fora uma onda mais grandona que lambera o casco
e penetrara pela pequena janela, como um duche de água fria. Quanto ao resto, a rota foi cumprida quase sempre só à vela, com a tripulação a revezar-se durante a noite à roda do leme em equipas de dois, por turnos de duas horas. Ao escriba calhou, como parceiro de vigia noturna, o filho Afonso, o barba azul e marinheiro faz-tudo de anteriores aventuras.
Eram sete da manhã quando o Cachaca ou Cachaça fundeou na baía do Tarrafal de São Nicolau. O cronista já o escreveu em anteriores diários de bordo, mas não se cansa de o repetir: a aproximação a uma ilha pelo lado do mar, ao nascer do sol, no silêncio da madrugada, é um dos momentos de felicidade para qualquer marinheiro. O transporte até ao cais do Tarrafal foi assegurado por um barco de pesca artesanal. Recebidos por José Carvalho, começámos o dia com um lauto pequeno-almoço no restaurante de Dona Bia: catchupa, omelete, peixe assado, chouriço, tostas mistas e café com leite. Com o estômago acondicionado, preparámo-nos para uma verdadeira lição de história ao vivo por parte do nosso guia, autor de quase uma dezena de livros, entre os quais duas ficções em que se propôs continuar a saga de “Chiquinho”, o nome que Baltazar Lopes deu àquele que é considerado o melhor romance da literatura cabo-verdiana.
Numa Toyota Hiace, subimos pelas montanhas agrestes da ilha, descemos aos vales profundos, admiramos os seus dragoeiros milenares e os terrenos férteis do norte da ilha, onde se cultiva banana, cana de açúcar, milho, feijão, manga, papaia, maracujá – e por momentos julgámos que estaríamos na Madeira. Da Fajã de Cima, alcançámos a Fajã de Baixo, de onde virámos para a Ribeira Brava – e a toponímia fez-nos recordar os Açores.
A Ribeira Brava, a capital, fica bem no interior, no que contrasta com as homólogas das outras ilhas. Pudera: alvos das frequentes investidas e saques de piratas e navios de nações inimigas de Portugal, as populações costeiras procuraram refúgio no interior montanhoso e de difícil acesso, acabando por se concentrar num lugar conhecido por Ribeira Brava e que ainda hoje, em tempos chuvosos (e este ano foi um deles), faz jus à sua fama bravia e intempestiva. Na Ribeira Brava, o MPD sofrera na véspera um dos seus muitos reveses nas eleições autárquicas, marcadas por uma profunda derrota do partido no poder. Na câmara municipal, que passou para as mãos do PAICV, um polícia vedou-nos o acesso à sala da assembleia municipal. Compreende-se e respeita-se: era lá que estavam depositadas as urnas com os votos das eleições de domingo, dia 1, jornada aziaga para o partido da direita liberal do primeiro-ministro Ulisses Cortês. No edifício que acolhe a sede do município, e como é corrente nas derrotas eleitorais, respirava-se um ambiente semelhante ao de um velório…
Na cidadezinha, de um asseio assinalável, curvámo-nos diante da estátua de Baltazar Lopes e do busto do médico e filantropo Júlio José Dias; visitámos o antigo seminário, onde estudaram figuras grandes da história de Cabo Verde, como os pais de Amílcar Cabral e Aristides Pereira. A Sé Catedral, restaurada a preceito (ver fotografia), serviu de sede ao bispado que chegou a ser de Cabo Verde e das Costas da Guiné.
Na Preguiça, o primeiro porto da ilha, na época que marcou o seu auge político e administrativo, ainda lá estão meia dúzia de canhões de bronze, o pouco que resta de um velho forte português, construído para proteção das incursões de piratas e corsários de vários matizes. Um padrão regista a passagem pela ilha de Pedro Álvares Cabral, na viagem que assinalou a descoberta, em 1500, do Brasil (ver fotografia). Terá este navegador passado simplesmente ao largo, ou aproveitado para fazer a sua derradeira aguada antes de rumar a Oeste, em demanda do novo continente? Aí está uma dúvida nunca desfeita e motivo de polémica entre investigadores e historiadores. À vasta e acolhedora baía do sul da ilha foi dado o nome da nau São Jorge, pertencente à frota de Cabral e que então se afundou algures no Atlântico.
Nesta jornada, de encher o olho, o coração e an alma, não houve tempo para ir à Praia Branca. Pena. Foi lá que nasceu em 1954, numa festa de despedida dos homens que iriam embarcar para as roças de Cacau de São Tomé e Príncipe, que foi criada a morna “Sodade”. O seu criador era um sanicolaense de nome Armando Zeferino Soares, que só recentemente viu consagrados judicialmente os seus indiscutíveis direitos de autor.
De regresso ao Tarrafal (um dos quatro tarrafais que existem no arquipélago e que devem o nome a uma planta que se chama tarrafo), a visita culminou com uma rápida ida ao pequeno Museu da Pesca (ver fotografia). Este centro interpretativo está instalado na sede da antiga SUCLA, a Sociedade Ultramarina de Conservas, Limitada, criada em 1942, e que se dedicou à conserva do atum, de que os mares de São Nicolau são riquíssimos, tal como em espadarte. Com genuíno prazer, a tripulação lavrou uma saudação muito especial no livro de visitas do museu. E inspirado na fórmula como os baleeiros norte-americanos encerravam os seus diários de bordo, também este cronista aqui deixa registado: “So ends this day”.
Até amanhã, em São Vicente.
José Pedro Castanheira
(No catamaran Cachaça, a navegar entre as ilhas de São Nicolau e São Vicente)
Diário de bordo 2 – Ilha do Sal, imprevistos
Pois cá estamos nós no Sal. No Sal?, perguntar-se-á o leitor mais atento, que ontem leu, e bem, este cronista a despedir-se do seu público com qualquer coisa como um “até amanhã em São Nicolau”. Pois é, estas coisas que parecem simples, das viagens que até são preparadas ao detalhe, ou milimetricamente, ou ao segundo, como se queira, têm sempre alguns imponderáveis, ou imprevistos, ou surpresas que tudo podem estragar. Umas podem ser bem agradáveis, pela novidade que acrescentam e qualificam; outras, pelo contrário, só perturbam e até são susceptíveis de deitar a perder tudo quanto fora meticulosamente programado.
O leitor não é tolo e portanto já percebeu que este cronista hoje não tem boas notícias para lhe dar. A esta hora, o marinheiro que deveria estar de binóculos bem assestados no cockpit ou empoleirado no topo do mastro real já deveria ter gritado a plenos pulmões: “São Nicolau à vista!” Ora acontece que esta afoita tripulação, que se propunha iniciar no sábado, 30 de novembro do ano da graça de 2024, a partir da ilha do Sal, uma inolvidável Volta a Cabo Verde em 15 Dias, ainda esta nessa mesmíssima ilha, na Baía de Palmeira, de onde era suposto o veleiro “Prosecco” ter zarpado ao final da tarde – tal era o plano de bordo sabiamente delineado pelos irmãos Blasques, Francisco e João, a dupla de experimentados skippers, o primeiro, o Francisco, o mais novo, como skipper-mor, o segundo, o João, naturalmente que menos novo, como seu adjunto, ou assessor, ou braço direito.
O indispensável abastecimento fora assegurado no supermercado Sucata – uma designação algo premonitória, quase que antecipando o que viria a acontecer. A loja, das poucas que ainda escapa à rede das lojas chinesas, fica nos Espargos, a cidadezinha que serve de capital desta ilha do Sal. Cerveja, claro, muita água, bacalhau congelado, batata frita, um saco gigante de amendoins, cinco litros de vinho tinto, uma garrafa de rum cubano e outros comes e bebes indispensáveis a uma saudável navegação e a uma alegre confraternização.
Enquanto isso, parte da equipagem avistou-se com um muito bem sucedido empresário de hotelaria, Manuel António Lobo. Natural do Sal, ou salense, mais precisamente da vila de Santa Maria, todos o conhecem pelo nominho de “Patone”, que nos deu uma panorâmica da economia, mas também da política da ilha, que descobriu no turismo a galinha dos ovos de ouro, responsável pela regular aumento do PIB do país.
Mais ou menos à hora aprazada, a tripulação tomou posse do veleiro, propriedade da empresa charter espanhola Alboran, com negócios em Maiorca, Canárias, Cuba e, claro está, Cabo Verde. “Prosecco”, assim se chama o iate , da construtura francesa Jeanneau, modelo Sun Odyyssey 519, de matrícula de 2018 (ver fotografia). Como no arquipélago só há uma marina no Mindelo, as embarcações de recreio e pesca ficam habitualmente fundeadas ao largo, no caso na baía de Palmeira. A tripulação, a bagagem, os víveres e outros utensílios e apetrechos – como o precioso iPad em que o cronista está a digitar – foram transportados para o veleiro num velho bote de pesca artesanal, de motor fora de bordo. Seguiu-se o que as regras da boa náutica e da mais elementar prudência mandam: confirmar se está tudo nos conformes. Ou seja, âncora, luzes, rádio, combustível, água potável, óleo, dinguy, coletes salva-vidas, defensas, cabos, sei lá que mais, pois que a respetiva lista se espraiava por mais de uma página A4, havendo que tudo verificar e testar. O responsável local da Alboran, acompanhado por dois colaboradores de nacionalidade cubana, estava nervoso e apressado. Até se compreendia, visto que completava nesse dia a bela idade de meio século. Todos os equipamentos mais delicados foram passados a pente fino: o seguro morreu de velho e nunca tínhamos navegado neste barco, nem sequer neste modelo, além de que a experiência ensina que navegar em Portugal ou na Europa não é exatamente a mesma coisa que em África. Um dos últimos equipamentos testados foi a sonda, um aparelhinho que vai mostrando a cada momento a profundidade das águas a que o barco navega. Ora acontece que a sonda tinha um pequeníssimo problema: não funcionava. Pura e simplesmente. O que impedia que nos fizéssemos ao mar. Para que o leitor melhor entenda: navegar sem sonda é como conduzir um automóvel numa estrada serrana, sem faróis, numa noite escruta e de cerrado nevoeiro. Só um louco ou um suicida!
A discussão que se seguiu foi brava. E mais brava ficou quando se percebeu que os responsáveis da Alboran já sabiam há vários dias que a sonda pifara, que nada fizeram para a substituir e nem sequer avisaram estes clientes vindos de Lisboa. A conversa foi subindo de tom, mas o pudor obriga este relator a poupar os seus leitores. Dela dir-se-á tão só que decorreu em português, em espanhol na sua versão cubana e em crioulo cabo-verdiano, entremeada por algumas expressões vernáculas em inglês mas já incorporadas pelas outras línguas nacionais. Em desespero de causa, ainda se tentou consertar a tal sonda, mas apesar dos rogos à Senhora dos Navegantes e aos muitos santos protetores dos homens e mulheres do mar, o aparelhinho não se condoeu (ver fotografia). Que fazer, então?
As alternativas não eram muitas nem brilhantes. Fazer as malas, regressar a Lisboa e processar a charter espanhola sem sequer ter iniciado a Volta a Cabo Verde, era um cenário humilhante, a raiar o absurdo, quem nem valia a pena equacionar. Navegar sem sonda era impensável – hipótese só para loucos furiosos ou para pilotos que conhecessem de olhos fechados os fundos das nove ilhas, não incorrendo em riscos aquando da aproximação aos vários portos. Substituir a sonda, só seria possível no Mindelo, termo da segunda etapa, mas ninguém garantia que naquela marina houvesse um modelo que se ajustasse à personalidade do “Prosecco.” Claro que haveria sempre a possibilidade de contratar um skipper local, disponível, e conhecedor das singularidades da costa cabo-verdiana. A recusa fez quase a unanimidade, porque a experiência mostra que um skipper estranho, que ninguém conhece, constitui frequentemente um fator capaz de estilhaçar em cacos o ambiente quase familiar que esta equipa forjou ao longo de vários anos de navegação conjunta. Restava uma derradeira alternativa: mudar para uma outra embarcação da Alboran, fundeada mesmo ao lado, que tinha o senão de ser um catamaran, um veleiro de características totalmente diferentes, no qual ninguém alguma vez viajara – nem mesmo o mais experimentado dos comandantes.
A decisão foi sendo tomada, noite dentro, ao longo de um democrático plenário. À falta de melhor, a opção catamaran foi-se impondo como inevitável. Com o inconveniente, infelizmente inultrapassável, de, ainda que estando disponível, só poder ser aparelhado durante a manhã.
Esta a razão pela qual permanecemos no Sal mais um dia que o previsto, com prejuízo inevitável da programação. A largada está prevista sensivelmente para as 14 horas. Depois, no Atlântico, cedo deixaremos de ter rede telefónica e internet. Como se disse, nenhum de nós tem qualquer experiência de catamaran. A coisa promete. Mas confiemos, porque não poderíamos ter começado pior esta Volta a Cabo Verde. Esperemos, pois, que no dia 2 já possamos saudar os leitores a partir de São Nicolau.
José Pedro Castanheira
(Oceano Atlântico, num catamaran entre as ilhas do Sal e de São Nicolau)
Diário de bordo 1 – Ilha do Sal
SAL. Assim se chama a ilha onde iniciamos a Volta a Cabo Verde em 15 dias. Volta que, convém que se esclareça – pois que haverá sempre ouvintes e leitores desconhecedores, ignorantes ou simplesmente distraídos – , não será em bicicleta, muito menos de avião, nem sequer num cruzeiro daqueles de dez ou doze andares, que costumam despejar toneladas de turistas apressados em Lisboa ou no Funchal. Será uma volta num pequeno veleiro, tripulado por um grupo de sete amigos, de muitos e variados ofícios, quase todos reformados, e que, caso tudo corra pelo melhor, deverá escalar todas as ilhas de Cabo Verde. Todas não, diga-se em respeito pela verdade – o valor supremo que deve nortear um repórter, mesmo quando enverga as vestes de marinheiro, como é o caso. É que não iremos a Santa Luzia, a única das dez ilhas cabo-verdianas que não é habitada pelo bicho-homem, mas que não deixaremos de avistar e saudar, com a devida e mui respeitosa vénia, aquando da segunda etapa, que ligará São Nicolau a São Vicente.
Voltemos, porém, ao Sal, a palavra e o conceito com o qual nos estreámos como cronista-mor desta expedição marítima para os ouvintes de RDP África. Planeada até ao milímetro, que é como quem diz até à milha náutica, aterrámos no Sal no dia 28, para, com tempo, nos aclimatarmos, abastecermos de víveres para duas semanas no mar, e sobretudo nos adaptarmos ao barco, o veleiro de nome “Prosecco”, alugado a uma empresa espanhola sediada em Maiorca e que nos aguarda no porto de Palmeira.
Muitos dos que já viajaram até Cabo Verde limitaram-se a ficar pela ilha do Sal. Principal destino turístico do arquipélago, ela passou a ser a sua ilha mais conhecida internacionalmente, muito mais que São Vicente, da cantora Cesária Évora, ou que Santiago, onde reside a capital, Praia. Alguns dirão, do alto da sua sabedoria, que, com essa estada pelo Sal, ficaram a conhecer o país, e até gostaram. Nada de mais completamente errado. Aquele Sal em que aterraram, onde passaram um fim de semana de folga ou mesmo uma semana de férias, desfrutando dos luxuosos hotéis da Ponta Preta, passeando-se nas esplêndidas praias de areia branca, espreguiçando-se ao sol e banhando-se nas águas limpas e cristalinas de Santa Maria, esse Sal é apenas uma parte da ilha, um oásis artificial e estrangeiro que tem pouco, muito pouco, a ver com o resto de Cabo Verde. O que não invalida a crescente importância deste turismo de massas, onde é tudo “prés a porter”, num modelo simplesmente importado do vigente nas Canárias, nas Caraíbas, em Cancun ou até de algumas zonas do Algarve.
Atual motor económico da ilha e do país, no entanto, o Sal – ironia das ironias – foi durante muitos séculos, pelo menos até à independência de Cabo Verde, em 1975, a mais pobre das suas ilhas. Autêntico deserto, sem vegetação nem vida animal, sem uma ponta de água – para além daquela que quase nunca cai do céu (e já vão dois anos sem que a chuva a abençoe )- , o Sal foi a última das ilhas a ser povoada, por escravos negros, africanos, transferidos temporariamente pelos seus senhores da vizinha ilha da Boa Vista. A sua única matéria prima era precisamente o sal, o mineral descoberto na boca de um vulcão há muito extinto no local de Pedra Lume. Explorado durante décadas e exportado em grandes quantidades para o Brasil, o sal do Sal esgotou-se enquanto riqueza económica. Hoje, as impressionantes salinas brancas de Pedra Lume não passam de uma das raríssimas atrações turísticas da ilha, e este cronista teve o enorme prazer de se banhar, com os demais companheiros, nas suas águas mortas e extremamente densas, a fazer lembrar o Mar Morto, que morto se mantém desde os tempos bíblicos e que nem mais esta terrível guerra entre Israel e o Hamas consegue ressuscitar…
Enterrado o ciclo do sal mineral, o Sal ilha entrou num novo ciclo, o do turismo, que para além de turistas, tem atraído uma indispensável mão-de-obra, recrutada noutras ilhas e em outros países africanos. O boom económico tem sido acompanhado por um boom social, inevitável e descontrolado, gerador de emprego mas também de novas formas de pobreza, bem patente nos pequenos bairros de lata que pululam como cogumelos nos arredores da capital, Espargos.
Assim, o taxista que nos levou do aeroporto internacional Amílcar Cabral até a uma residencial italiana em Palmeira, é natural de São Nicolau. Desta ilha é também Belinda, a empregada de um das numerosas lojas de chineses, a Loja Hongge Li, ou simplesmente Lee. Álvaro, o condutor da Hiace (ver fotografia) que nos mostrou a ilha, veio de Santiago, tal como Nilton, o guia que nos apresentou aos pequenos tubarões na Baía da Parda. Já o motorista de uma das maiores traineiras da ilha, e que concorreu sem sucesso à faina de Sesimbra, é de São Vicente – Dario de seu nome, “como o rei persa”, assim se apresentou. Há pouco menos de um século, a população da ilha era diminuta, não ultrapassando o milhar de almas. Número que entretanto se multiplicou por trinta: no último censo, de 2021, a população da ilha já ia a caminho dos 34 mil! O mesmo censo revelou que a população de Cabo Verde tem vindo a diminuir, mas no Sal cresce a uma média anual de 2,5 por cento.
Por inacreditável que pareça, a desértica e outrora paupérrima ilha do Sal acaba por ser mais um dos vários milagres que Cabo Verde tem vindo a operar. Milagre não isento de críticas e limitações, mas delas talvez venhamos a falar quando aportarmos a outras ilhas. Para já, está tudo pronto para a largada, ao final da tarde, desta Volta a Cabo Verde em 15 dias. Caro ouvinte da RDP África, embarque connosco a bordo do veleiro “Prosecco”. Só espero que saiba nadar e, já agora, que não enjoe. Até mais logo, ou até amanhã, já em São Nicolau.
José Pedro Castanheira
Cronista-mor do “Prosecco”, ilha do Sal, Cabo Verde