«Os meus tempos na Alemanha»
Abdulai Silá e José Luís Hopffer Almada são dois dos largos milhares de estudantes africanos com vidas transformadas pelos anos em que estudaram na República Democrática da Alemanha. Mas não foram só os jovens universitários que beneficiaram desta proximidade privilegiada entre os países ligados pelo ideal socialista. Arnaldo Mendes faz parte do grupo de 16 mil trabalhadores moçambicanos abrangidos por um acordo entre Estados e Carlos Mariano Manuel, médico angolano, doutorou-se e prestou serviço na Alemanha antes e depois da reunificação. Em comum, têm a grata memória das experiências e dos ensinamentos.
Autoria: Paula Borges, com colaboração de António Silva Santos
Engenheiro, dramaturgo e escritor, Abdulai Silá, nascido numa família modesta de Caió, no sul da Guiné-Bissau, chegou à República Democrática da Alemanha em 1979 para estudar Engenharia Electrotécnica. Desde os 8 ou 9 anos que o jovem, que viria a concluir os estudos no liceu da capital da então colónia portuguesa, definira o curso que desejava seguir. A determinação nasceu num dos domingos em que Abdulai acompanhou o pai, condutor de um camião, nas lides de preparar o veículo para a semana de trabalho. Lavar, reparar, abrilhantar. Era um momento de união e de partilha mas o rapaz Abdulai não percebia porque é que os brancos da zona (comerciantes, funcionários) aproveitavam essa jornada de lazer para um passeio com a família e os negros não. Sem dar grandes explicações, o pai disse-lhe que o motivo era não haver combustível. A dúvida passou a persegui-lo: “porque é que os brancos podem e os pretos não? Isso é racismo”, pensou! Certo dia, muito de mansinho, lá disparou a pergunta. “O que tinha que estudar para perceber tudo aquilo dos motores?” Electrotecnia, responderam-lhe! Fez-se luz e isso tornou-se um objectivo.
Abdulai, estudante empenhado, membro das brigadas de alfabetização, já com envolvimento activo no construir da Guiné Bissau independente, fez parte de um pequeno grupo de alunos seleccionados para provar que os guineenses podiam ter êxito académico na República Democrática da Alemanha. Desde o primeiro momento, entregou-se a essa missão. “Eu tinha acabado de fazer 21 anos e o meu país tinha 5 anos. Eu ainda estava muito ligado ao acontecimento independência e tinha muita fé no futuro do meu país. Acreditava que nós íamos ser, de facto, a geração daquilo que, no hino nacional, é designado por paz e progresso. Tínhamos saído da guerra, estávamos num estado de desenvolvimento extremamente atrasado. Mais de 90 % da população era analfabeta e abraçámos esse ideal de construir paz e progresso”.
Leipzig era a cidade onde quem chegava de todo o planeta tinha paragem obrigatória. Lá se localizava o Herder-Institut no qual os «caloiros» passavam uns meses a aprender a exigente língua alemã e a ganhar bagagem para as licenciaturas escolhidas. Era um mundo em miniatura, lembra José Luís Hopffer Almada, cabo-verdiano, que lá se cruzou com Abdulai. O Herder-Institut, realça, era impressionante. “Havia pessoas de dezenas de países: Da Ásia: vietnamitas, cambodjanos, indianos, indonésios, tailandeses, também latino-americanos, também norte-americanos. Havia africanos de todos os países e até portugueses, acho que enviados pelo Partido Comunista ou por aqueles comités de amizade”.
É com os olhos brilhantes que José Luís recua a esses anos de descoberta e desafio, apesar de, no início, ser muita a saudade das ilhas atlânticas. Perpetuou-a em versos como estes:
Não há dia, terra
Não há noite que o teu suor em reconstrução
não me venha acariciar o clítoris da saudade em sangue
em figuras de milho e cabra…
Hopffer Almada guarda, com todo o detalhe, memórias de como chegou, quem encontrou, o que sentiu. “Fiz uma estranha viagem para a Alemanha. Saí de Cabo Verde acompanhado por dois amigos que também iam estudar para lá. Viajámos via Bissau (porque a embaixada da RDA estava em Bissau e tinha jurisdição sobre Cabo Verde) para obtermos o visto. Viajámos primeiro para a União Soviética. Fizemos trânsito em Moscovo. Lembro-me bem dos controlos. Eles ficaram retidos e eu viajei para a Alemanha sozinho. Cheguei e não sabia dizer absolutamente nada em alemão. Estava lá uma pessoa do Ministério da Educação que me entregou um bilhete de comboio para viajar para Leipzig. Eu falava inglês e francês que tinha aprendido no liceu e viajei na companhia de estudantes do Afeganistão. Foi a primeira vez e aquilo pareceu-me completamente estranho porque tinham as vestes tradicionais e falavam a língua deles. (…) Quando cheguei à estação principal de comboios de Leipzig, a maior estação de toda a Alemanha, uma coisa gigantesca, não havia ninguém para me receber".
A necessidade, como sempre, aguçou o engenho e Hopffer acabaria por encontrar a residência estudantil certa na rua que era bem conhecida na cidade, a Rua 18 de Outubro, por referência à batalha em que os alemães venceram as tropas napoleónicas. A aluna que estava de escala à portaria, uma sul-africana, apresentou-o a José Filipe, veterano guineense (hoje agrónomo na Guiné-Bissau natal) que garantiu que nada lhe faltaria. “Levou-me para o quarto dele, dormi aquela noite lá. Deu-me de comer, tratou de mim muito bem com aquela solidariedade que havia entre a Guiné-Bissau e Cabo Verde. No dia seguinte, encaminhou-me para o Instituto onde fui tratar de toda a papelada”.
José Luís e Abdulai sublinham a exigência e as virtudes do método de aprendizagem de uma língua com as características da alemã. Diz Abdulai Silá que isso deixou marcas positivas para a vida. “Ter aprendido aos 21 anos uma língua tão sofisticada ajudou-me a dominar outras línguas e a entender melhor línguas que já falava, incluindo o português. Foram dificuldades transformadas em oportunidades. Os professores do Instituto eram muito experimentados e ajudavam-nos bastante. Fora das aulas tínhamos compatriotas que já lá estavam e aconselhavam e ajudavam bastante no enquadramento. Foi assim que aguentámos as contrariedades, o rigor nos horários, a disciplina, o autocarro que chegava sempre à hora. Pode parecer algo normal mas habituar-se a esta pontualidade não foi fácil”.
Hopffer recorda também com carinho esses primeiros meses. Logo no primeiro dia de aulas era entregue um glossário e os alunos iam aprendendo as palavras essenciais para a comunicação “como te chamas, depois os alimentos para poder ir às cantinas, vocabulário ligado aos transportes, etc.” No final destes meses, que exigiam estudo intenso, e muitas saídas pela cidade para praticar, ficavam aptos a iniciar os estudos nas diversas faculdades.
Hopffer manteve-se em Leipzig a estudar Direito e Abdulai seguiu para Dresden, capital da Saxónia. “Só pelo nome era um grande desafio. Ontem como hoje é uma das dez universidades de excelência da Alemanha com professores renomados, com condições de trabalho extraordinárias e exigência enorme. Nós íamos sem preparação técnica apropriada. Fizémos o liceu mas era tudo blá blá. Os colegas alemães faziam o liceu técnico e, antes do curso, já eram electricistas. Sabiam de coisas de que nunca tínhamos ouvido falar. E era com eles que tínhamos que competir “.
Abdulai adaptar-se-ia bem mas reconhece que a pressão foi muita e prolongou-se pelos seis anos. Já nos últimos meses, integrou uma unidade de trabalho que lhe deu amigos para a vida e com quem se encontra de cinco em cinco anos. “São os colegas da equipa de pesquisa que integrei numa fase de transição das correntes fortes para a electrónica. A minha tese foi a elaboração de um protótipo para testar outros protótipos que os meus colegas iam desenvolvendo. Trabalhámos de forma muito intensa. Ficou a ligação. Vamos a Dresden e passamos três dias para conversar”, destaca Abdulai que mantém o vínculo também com a universidade que o designou embaixador regional para a parte do mundo em que vive.
Foi ainda na Alemanha que a literatura ganhou espaço na vida do autor do primeiro romance da Guiné-Bissau. “Eterna Paixão”, foi lançado em 1994, e versa sobre a euforia e a desilusão do povo nos anos posteriores à independência da Guiné Bissau, proclamada em 1973. Não foi preciso terminar a licenciatura em Engenharia Electrotécnica para Abdulai encontrar resposta à tal pergunta sobre o funcionamento dos motores, e outras mais complexas, e o caminho para uma das grandes paixões – até ainda pouco desenvolvida – foi aberto graças a um casal amigo alemão, ela professora, ele operário e leitor compulsivo. Em casa tinham uma grande e diversificada biblioteca e lá o jovem Abdulai iniciou-se em autores até aí inacessíveis.
Ter hoje obras traduzidos em alemão é, confessa Abdulai, “muito interessante”! E, acrescenta, “particularmente porque um dos livros foi escrito em Dresden. Estive numa feira de verão mas houve neve. Tive tempo e pensei que a melhor forma era escrever. Foi publicado em alemão mais de 30 anos depois. Cheio de simbolismo!”
Estes anos de juventude foram de trabalho árduo e descoberta mas também de muito namoro e diversão, conta, entre risos, Hopffer Almada. “Lepizig era uma cidade cosmopolita. Tinha-se a oportunidade de conhecer gente de todos os países, era uma cidade muito festiva. Além das discotecas, cada residência tinha a sua própria discoteca. Durante uma semana podíamos ir a várias residências e dançar e conviver com alemães e com essa juventude de todo o mundo”. A comunidade era muito aberta e José Luís teve namoradas de vários pontos do planeta: de Mongóis a malgaches, africanas e latinas.
Também o moçambicano Arnaldo Mendes recorda com saudade os três anos que passou na Alemanha. É um dos mais activos madgermanes, ou seja, «os que vieram da Alemanha». Assim ficaram conhecidos – pela palavra em ronga, uma das línguas locais – estes homens que, ao longo de anos, saíram periodicamente às ruas de Maputo para reclamar aquilo a que tinham direito, o dinheiro transferido para Moçambique, enquanto trabalharam na RDA. Não sabiam mas estavam envolvidos num acordo entre estados que agora Arnaldo vê como quase ao nível dos trabalhos forçados. E porquê? Devido à forma como o dossier financeiro foi conduzido. Realça, no entanto, que os tempos na Alemanha foram de muita aprendizagem e ricas vivências. “Na altura tinha 21 anos, tinha saído do exército, havia problemas de emprego, emigrava-se muito para a África do Sul mas também havia esta oportunidade para a RDA… e aproveitei. Nós fomos para Alemanha no acordo rotativo de quatro anos para emprego e formação profissional”.
E lembra, “cheguei em fevereiro de 88, no meio de muito frio. Fomos direcionados para a empresa, começámos um período de formação: língua e politécnica. Seis meses depois éramos integrados no sector de produção, em paralelo com as aulas. Eu estava numa empresa de ferro que até agora existe e fazíamos muita coisa. Estive primeiro numa secção em que fazia escadas, baloiços, materiais para amortecedores, não ficavas num único sector. Passei para os tubos para os pipelines de água e gás.”
Arnaldo não estranhou os novos métodos e o novo país. “Adiantei-me logo ao trabalho e não foi complicado. Socialmente vivíamos em internatos. Duas pessoas por quarto, cozinha e wc comum.
Estava numa cidade com muitas nacionalidades, uma cidade industrial e com uma grande comunidade da URSS. Tive alguns problemas com um ou outro russo porque mantinha amizade com oficiais e eles convidavam-me para as festas. Podia haver um ou outro que não gostasse de alguém como eu, mais escurinho. Muitos se iludem e dizem que os alemães eram racistas, que isso era estrutural mas não é verdade. “
E conclui, “o convívio foi muito bom. As pessoas iam aprender para trabalhar e trazer dinheiro para o país”. Isso foi precisamente o que falhou quando, após a queda do muro, em 1989, foram incitados a regressar a Moçambique. “Até 1985”, explica, “as transferências eram facultativas. Podíamos transferir o que pretendíamos mas uma decisão do ministro Marcelino dos Santos, determinou que, a partir de 1 de janeiro de 1986, transferíamos 70%. Chegámos cá e não vimos dinheiro nenhum nem conta nenhuma. Começámos a fazer barulho e cederam, mas deram-nos um dinheirinho. Por causa da pressão vimos algum valor insignificante que não corresponde nem a 1% daquilo a que temos direito. Nunca nos deram o dinheiro que corresponde ao valor que transferimos”, lamenta.
Entre os muitos jovens que José Luís conheceu nos seus tempos em Leipzig havia vários alemães negros, filhos de mãe alemã e pai africano. O pai partia, a mãe ficava e encarregava-se de tudo. Para o cabo verdiano, estudante de Direito, isso era motivo de grande interesse como também a análise da limitação de liberdade que sabia existir. O facto de ser de Cabo Verde permitia-lhe, ao contrário dos nacionais da RDA e da maioria dos outros estudantes, viajar, nomeadamente, para Berlim Ocidental. Trazia cassetes com as novas músicas e fazia furor. Aconteceu com muitos temas de reggae e também com os Bulimundo de Cabo Verde. Era dançar até cair! José Luís recorda como, já regressado às ilhas aplicou na inovação cultural muito do que aprendeu nas suas múltiplas vivências e lembra também como celebrou, com entusiasmo, a queda do muro de Berlim, consciente das vantagens do sistema comunista mas também das necessárias e desejadas mudanças.
Carlos Mariano Manuel, patologista e historiador angolano, também viveu na Alemanha, primeiro na dividida, depois na unificada. Chegou, já com a licenciatura concluída em Luanda, para uma especialização na reputada universidade de Humboldt. “Eu era investigador com o propósito de, no termo da investigação, almejar o título de Doutor em Ciências Médicas e era médico em especialização em Patologia no hospital da respetiva da faculdade, o Charité. Após o doutoramento foi-me dada a oportunidade de integrar a carreira docente. Ministrava aulas de patologia como professor assistente”.
Carlos lembra-se com precisão de como soube que o sistema estava literalmente a cair. “No dia em que ocorreu a queda do muro de Berlim eu estava numa cidade a centenas de kms de Berlim, estava a participar numa actividade científica que consistia em abordar novos métodos de doenças do tecido linfoide. Estávamos nesta atmosfera com outros cientistas alemães e da Suiça e subitamente começámos a ouvir que algo de anormal estava a passar-se. Por contactos telefónicos soubémos que estava a concentrar-se muita gente e a fazer pressão para que transpusessem o muro. Foi nessa altura que interrompemos a actividade e regressámos todos a Berlim. Por volta das 21h, cheguei e testemunhei todos os eventos.”
Abdulai confessa que nunca gostou de Berlim, a cidade dividida, ele que foi consolidando a admiração pela história da Alemanha. “É uma coisa que é mítica. É uma mistura de muita coisa associada à violência: as guerras mundiais e as barbaridades, inclusivé no estado onde eu vivi.”
O engenheiro e escritor sublinha como esta experiência alemã o moldou e facilitou a interpretação do mundo, do seu continente, da sua Guiné-Bissau natal. “É difícil entender as contradições”, diz, enquanto destaca a grande evolução científica e cultural de um país onde um homem como Hitler é
eleito democraticamente. “E usei isso como um utensílio para entender melhor o meu país. Nós lutámos e fizémos crescer ideias extraordinárias, nós acreditámos em ideias e chegámos a um ponto em que tudo se desmorona. Temos um panorama político extremamente difícil de compreender. A história da Alemanha para nós africanos, ou pelo menos, para aqueles que se comprometem com o progresso e bem-estar é rico em ensinamentos. Ajuda a equilibrar as coisas e reduzir a sensação de frustração que muitas vezes sentimos"